Pelo bem-estar do animal

Animais estressados apresentam diminuição de desempenho, tendem a ficar mais doentes e reduzem a qualidade de carne e leite.

10.11.2015 | 21:59 (UTC -3)

Nas últimas décadas, os mercados consumidores de diversos países da Europa e dos Estados Unidos vêm demonstrando crescente preocupação com aspectos ligados ao bem-estar animal, impacto ambiental dos dejetos pela poluição dos cursos de água e emissões gasosas pelo efeito estufa, além da segurança dos alimentos, especialmente relacionado às doenças, como a da vaca louca, presença de contaminantes e resíduos de antibióticos. Pode-se constatar uma tendência à diminuição do grau de intensificação dos sistemas de produção. A pressão dos mercados consumidores vem sendo sentida nesses países, onde ocorre a redução da exploração de aves de postura em gaiolas, a manutenção de porcas gestantes em gaiolas, a criação de terneiros em baias individuais com dietas pobres em ferro, entre outros. Por outro lado, cadeias de fast food como McDonalds, nos EUA, vêm limitando suas compras de carne a frigoríficos aprovados em auditorias que verificam o adequado manejo dos animais em termos do seu bem-estar.

Desde a década de 1970, os cientistas estão tentando definir ou conceituar o bem-estar dos animais. Uma definição de bem-estar bastante utilizada atualmente foi estabelecida pela FAWC (Farm Animal Welfare Council), na Inglaterra, mediante o reconhecimento das cinco liberdades inerentes aos animais:

1.A liberdade fisiológica (ausência de fome e de sede e desnutrição) uma alimentação correta;

2.A liberdade ambiental (edificações adaptadas, conforto térmico e físico). Ausência de lesões provocadas por tipos de piso;

3. A liberdade sanitária (ausência de doenças e de fraturas),

4. A liberdade comportamental (possibilidade de exprimir comportamentos normais). Expressar o comportamento característico da espécie.

5. A liberdade psicológica (ausência de medo, de ansiedade ou estresse intensos ou prolongados).

O bem-estar é avaliado por meio de indicadores fisiológicos e comportamentais. As medidas fisiológicas associadas ao estresse, como nível de cortisol plasmático, indicam que, se o estresse aumenta, o bem-estar diminui. Já os indicadores comportamentais são baseados especialmente na ocorrência de comportamentos anormais ou estereotipados.

O estresse tem sido o principal mecanismo de medida ou de avaliação do bem-estar animal. A resposta de estresse tem dois componentes. O primeiro é uma rápida resposta de “alarme”, e como exemplos podemos citar a resposta do animal a uma ameaça, como a chegada inesperada de um predador, onde este se prepara o organismo para a “luta ou fuga”. Esse processo envolve a atividade do sistema simpático-adrenal e a secreção de hormônios catecolaminas, adrenalina e noradrenalina (epinefrina e norepinefrina). O segundo componente da resposta do estresse ocorre após o alarme e durante um período mais longo. Sua função seria de permitir ao animal recompor-se da situação de alarme ou adaptar-se à nova situação. Este componente da resposta do organismo ao estresse envolve principalmente o axis hipófise-adrenal.

Uma das etapas em que ocorrem problemas quanto ao bem estar dos animais e piora da qualidade da carne é durante as operações de embarque, desembarque e no transporte. Alta densidade de carga tem sido responsável pelo aumento das contusões e estresse dos animais, sendo inadmissível densidade superior a 550Kg/m2. No Brasil, a densidade de carga utilizada é, em média, de 390 - 410Kg/m2. O aumento do estresse durante o transporte é causado pelas condições desfavoráveis como privação de alimento e água, alta umidade, alta velocidade do ar e densidade de carga.

As operações de embarque e desembarque dos animais, se bem conduzidas, não produzem reações estressantes importantes. O ângulo formado pela rampa de acesso ao veículo em relação ao solo não deve ser superior a 20o, sendo desejável um ângulo de 15o.

A extensão das contusões nas carcaças representa uma forma de avaliação da qualidade do transporte, afetando diretamente a qualidade da carcaça, considerando que as áreas afetadas são aparadas da mesma, com auxílio de faca, resultando em perda econômica e sendo indicativo de problemas com o bem-estar animal. A extensão das contusões aumenta com o aumento da densidade de carga, principalmente com valores superiores a 600kg/m2. A maior influência do transporte na qualidade da carne é a depleção do glicogênio muscular por atividade física ou estresse físico e/ou psicológico, promovendo uma queda anômala do pH postmortem e originando a carne DFD (dark, firm, dry, ou seja, escura, dura e seca). Transporte por tempo superior a 15 horas é inaceitável do ponto de vista de comportamento e bem-estar animal.

O estresse pré-abate pode ter conse-qüências negativas na qualidade da carne, aumentando, inclusive, o risco de incidência de DFD. Esse tipo de carne é um problema causado pelo estresse crônico antes do abate, que esgota os níveis de glicogênio. O pH final elevado, acima de seis, é a causa das características físicas da cor escura, alta capacidade de retenção de água da carne e menor tempo de prateleira, e ocorre devido à pequena quantidade de ácido lático produzido. No Brasil, os frigoríficos só exportam carne com pH inferior a 5,8 avaliado diretamente no músculo Longíssimus dorsi, 24 horas post-mortem.

Nas instalações do frigorífico, há cinco causas de problemas do bem-estar animal:

• estresse provocado por equipamentos e métodos impróprios que desencade-iam excitação, estresse e contusões;

• transtornos que impedem o movimento natural do animal, como reflexo da água no piso, brilho de metais e ruídos de alta freqüência;

• falta de treinamento de pessoal;

• falta de manutenção de equipamentos, conservação de pisos e corredores;

• condições precárias em que os animais chegam ao estabelecimento, principalmente devido ao transporte.

Outros aspectos que devem ser considerados são o respeito pelo tempo de repouso e fornecimento de dieta hídrica, procurando evitar a mistura dos lotes nos currais de pré abate, o que aumenta a movimentação dos animais. A condução dos animais até o box de atordoamento deveria ser realizada calmamente, sem o uso de bastão elétrico ou gritos, que estressam os animais, aumentando o gasto de glicogênio e também a circulação de catecolaminas. O atordoamento deveria ser realizado de forma eficiente e rápida para provocar a insensibilização do animal até a sangria, reduzindo o seu sofrimento.

Todavia, deve-se ressaltar que existem diferenças quanto à reatividade dos animais às condições estressantes, tanto nas fazendas quanto no transporte e no abate. A reatividade pode ser influenciada pela raça, pelo indivíduo dentro de cada raça, pela idade e pelo sexo, além de ser modulada pela experiência prévia. Bovinos de raças européias foram menos reativos durante práticas de manejo rotineiras, como pesagem e sua colocação em currais de espera, quando comparados a bovinos cruzados com Nelore. Os animais mais reativos apresentaram menor ganho de peso, alteração de coloração da carne e modificação do pH, sobretudo nos horários iniciais. Bovinos não castrados tendem a apresentar maior movimentação e interações agonísticas com outros bovinos do que animais castrados ou fêmeas, havendo maior proporção de carne escura nos animais inteiros.

Os animais parecem ter memória, sobretudo para fatos considerados aversivos, podendo identificar lugares e tratadores que os maltrataram. Vacas que foram tratadas de forma aversiva, quando na presença do tratador mesmo não submetidas mais aos maus tratos, apresentaram reações comportamentais de fuga, maior quantidade de leite residual e maior contagem de células somáticas. Por outro lado, a capacidade de aprendizado e memorização pode ser utilizada para amansar os animais, tornando o seu manejo mais fácil e menos perigoso para os seres humanos. Terneiros que foram acariciados por apenas alguns minutos por dia, durante a fase anterior ao desmame, tornaram-se mais mansos em práticas de manejo posteriores. Novilhos suplementados e submetidos ao contato diário com os tratadores apresentaram reatividade decrescente, sendo facilmente manejados no embarque e transporte até o abatedouro.

O reconhecimento de que existem diferenças entre os animais quanto à sua reatividade e que animais estressados diminuem seu desempenho, tendem a ficar mais doentes e reduzem a qualidade de seu produto (carne, leite) é importante para que se alterem de forma racional algumas práticas de manejo dos animais. O ponto-chave é a informação, a conscientização e o treinamento do pessoal envolvido nas operações com gado.

O mercado consumidor definirá os padrões de qualidade, sobretudo aquele com maior poder aquisitivo, e, num futuro bastante breve, isto condicionará as práticas de manejo aceitáveis.

Vivian Fischer, Isabella Dias Barbosa da Silveira e Carmen Lúcia de Souza Rech

UFPel

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