Qualidade que vem do bem-estar

O trato dispensado aos bovinos durante o manejo pré-abate tem relação direta com as características da carne produzida. Agressões por parte dos vaqueiros também comprometem o desempenho dos animais e denigrem a im

10.11.2015 | 21:59 (UTC -3)

Apesar de a palavra bem-estar ser utilizada rotineiramente pelas pessoas, ainda existe uma grande confusão sobre o seu significado, causando uma diferenciação de valores para o mesmo conceito.

Nesse sentido, para minimizar essas contraposições, grande parte dos pesquisadores sobre esse tema adota a definição de Broom (1986), que caracterizou o bem-estar como sendo o estado de um dado organismo durante as suas tentativas de se ajustar ao ambiente, assim, a ação humana pode melhorar ou piorar o bem-estar animal.

As primeiras leis no Brasil, tratando dos direitos dos animais, são publicadas no Decreto Federal nª 24.645, artigo 3ª, de 10 de julho de 1934. Ações que infrinjam este artigo implicam em multa e em pena de prisão de dois a quinze dias, seja o infrator o proprietário ou não do animal.

Apesar da existência dessas leis, muitas vezes elas não são cumpridas, ou sequer conhecidas pelos setores envolvidos. Esta constatação estimula o surgimento de organizações que atuam em defesa dos direitos dos animais, pressionando para definição e cumprimento de normas legais que limitem a ação do homem no trato com animais.

Tais movimentos têm crescido com tal força que grande parte da legislação da União Européia (UE), envolvendo as relações entre homens e animais, foi elaborada sob tais influências.

Não estamos tão distantes dessa realidade européia, afinal, se quisermos exportar para os países que participam da EU (Eurepgap), ou mesmo fornecer carne para grandes redes americanas consumidoras de carne, como Mc Donalds e Burguer King, devemos produzi-la segundo suas regras, as quais consideram o bem-estar como item indispensável nas auditorias de conformidades.

É fato que o cliente final do processo de produção de carne está preocupado principalmente com a qualidade intrínseca da carne (sabor, cor, composição física da peça etc) e o preço, mas o que a maioria dos programas de qualidade ignora é que o resultado final dessa qualidade é influenciado significativamente pelas etapas que antecedem o processo industrial, desde a genética utilizada, passando pelos sistemas de criação e principalmente pelo manejo pré-abate e atordoamento do animal no frigorífico.

Durante um trabalho realizado em vários estados brasileiros, com a avaliação de 16,3 mil animais, durante o projeto “Qualidade Total e Racionalização do Manejo de Bovinos de Corte”, em conjunto com a equipe de técnicos do programa Garantia de Origem Carrefour, foram observados níveis preocupantes de animais contundidos durante o processo de manejo pré-abate (Figura 1 -

).

Nesse aspecto, a conduta das pessoas envolvidas nos procedimentos de manejo influencia sobremaneira a qualidade do produto a ser produzido. Assim, seria ingênua a preocupação com o bem-estar dos animais de produção sem que haja inicialmente um programa de valorização do ser humano dentro da empresa.

Além da preocupação com salários, incentivos monetários e desenvolvimento social dos funcionários, devem ser destacados investimentos no treinamento e qualificação da mão-de-obra, que refletem diretamente na qualidade da carne. Esse resultado pôde ser constatado no programa Garantia de Origem (Carrefour), que observou uma crescente redução nos níveis de contusões das carcaças (Figura 2) após treinamento efetivo dos agentes envolvidos no fornecimento de bovinos para a indústria.

Esses programas de qualidade com treinamento da mão-de-obra para o manejo com o gado não devem ficar restritos às iniciativas de grandes empresas. Um exemplo disso são as demandas de cursos sobre Manejo Racional de Bovinos por diversas fazendas (Faz. Dobrão, Faz. Jacutinga/Divisão, Faz. São Marcelo, Faz. Sta. Encarnação etc) que investem na pecuária de qualidade (Figura 3).

Tendo em vista essa mesma abordagem, a fazenda Mundo Novo (Uberaba), em conjunto com a Leilopec (leiloeira de gado/Uberaba), aplicou o mesmo treinamento durante os preparativos de um de seus leilões. Os resultados foram surpreendentes, durante todo o leilão não houve qualquer necessidade de agressão por parte do vaqueiro para a condução dos animais apresentados.

Essa iniciativa pioneira foi inspirada principalmente pelo fato de que a imagem do bovino deve ser valorizada a todo instante frente à opinião pública, e os leilões de gado transmitidos pela TV são uma fonte poderosa para esse fim.

No entanto, o que se observam rotineiramente nesses eventos são ações que denigrem a imagem do produtor e mesmo do comerciante de bovinos, com animais em pânico dentro do recinto, sendo agredidos, às vezes se atirando ou mesmo se machucando frente às câmeras. Esses episódios começam a ser considerados relevantes, principalmente pelos inúmeros telefonemas recebidos pelas leiloeiras, nos quais o público sugere a redução das agressões durante o manejo no recinto.

Mas será possível que com um simples treinamento os animais possam se apresentar tranqüilos durante um leilão? A resposta é categórica, NÃO. O trabalho de manejo racional deve ser iniciado no dia do nascimento do animal. Através desse manejo, cada bovino, seja em sistemas de gado elite ou mesmo em cria extensiva, irá aprender a gostar ou não da sua relação com os humanos. Os resultados obtidos com o treinamento do pessoal da leiloeira irão ser mais ou menos expressivos conforme o perfil comportamental do gado a ser comercializado.

Com os procedimentos de manejo sendo realizados de acordo com as necessidades dos animais, ou seja, definindo padrões de ação visando o bem-estar animal durante os procedimentos de chegada na leiloeira, espera, identificação, alimentação e condução até o recinto, os problemas de manejo, com qualquer tipo de bovino, certamente serão minimizados.

Boas soluções existem, no entanto, é imprescindível conhecer melhor os animais que criamos e promover o treinamento das pessoas envolvidas, o que proporcionará condições para o planejamento estratégico das atividades. Certamente o ponto mais importante é o compromisso do pessoal envolvido. Assim, seguindo alguns princípios de bem-estar, toda a cadeia produtiva tem a se beneficiar, seja através do aumento da produtividade, seja nas melhorias das condições de trabalho e de vida tanto para humanos como para animais.

Não há como produzir qualidade para o meio externo se não a implementamos no meio interno!

Marcos Chiquitelli Neto

Unesp/Jaboticabal

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