Surpresas da vaca louca

O Brasil está ficando com a “parte boa” da crise da Encefalopatia Espongiforme Bovina, ou doença da vaca louca, mas é preciso comprometimento de toda a cadeia produtiva para evitar que esse mal chegue ao nosso rebanho.

10.11.2015 | 21:59 (UTC -3)

Quase vinte anos já se passaram desde o início da ocorrência da popularmente denominada Doença da Vaca Louca e o assunto ainda permanece nos noticiários despertando muito interesse e curiosidade.

No início do aparecimento do surto de BSE, rações eram preparadas com farinha de carne e ossos (FCO) - feitas com as partes não comestíveis de animais abatidos em frigoríficos. Como o processo de industrialização, embora utilizasse temperaturas superiores a 115ºC, não era suficiente para destruir a PrPSc, essa era introduzida na alimentação de outros bovinos mantendo seu potencial infectante. Outros bovinos também infectados, igualmente abatidos e, quando doentes, inteiramente utilizados para fabricação de FCO, foram sendo incorporados a uma cadeia alimentar cíclica, com contaminação de milhares de animais.

Uma vez que esse mecanismo se tornou conhecido, houve proibição de se fabricar rações com FCO de ruminantes, mas muitos animais já estavam contaminados e, assim, foram desenvolvendo a doença ao longo dos anos seguintes. Sim, no caso da BSE fala-se em anos de incubação e não em dias ou semanas como acontece com a grande maioria das enfermidades. Isso dificultou bastante o controle da BSE, pois não se descobriu, aliás, até hoje, um meio de se fazer o diagnóstico da enfermidade com o animal ainda vivo. Mesmo depois dos primeiros sintomas, o animal ainda vive vários meses, e o diagnóstico definitivo só vai ser concluído após os exames microscópicos do cérebro.

Em 1989, as previsões para a erradicação da BSE no Reino Unido - Inglaterra, principalmente, apontavam para o ano 2000. Mas, em 2002 ainda ocorreram mais de 1200 casos. Em 2003, próximo de 600 casos também foram registrados, apesar do enorme empenho do governo e da sociedade. Esse atraso ocorreu devido à alta infectividade do PrPSc para bovinos, que se contaminam com pequenas quantidades, e da contaminação de fábricas de rações, caminhões e instalações. Talvez tenha havido também alguma burla das normas, pois os proprietários custaram a entender a gravidade da situação.

Dessa experiência pôde-se apurar então que a BSE era transmitida via alimentação. A transmissão de mãe para filhos ocorria, mas não era um fator importante na epidemiologia. As medidas tomadas quanto à alimentação seriam suficientes para controlar o surto, mas outras surpresas ocorreram no decorrer na história da BSE.

Outras espécies - gatos domésticos e animais de zoológico, também se infectaram naturalmente com o agente da BSE. Em 1996, o governo britânico teve que admitir que o homem também podia ser vítima da doença, sendo essa mortal em 100% dos casos. Até hoje, cerca de 150 pessoas foram vitimadas; longe de ser uma epidemia, a doença no homem, denominada vCJD assusta muito por comprometer grandemente o sistema nervoso central, evoluindo para demência e total descontrole de movimentos do indivíduo, progredindo até sua morte. Entenda-se que hoje sabemos que “apenas” 150 pessoas morreram, mas na época, por se desconhecer as características da doença, não era absurdo admitir que milhões de pessoas poderiam ser vitimadas. Isso gerava muita ansiedade na população.

Inicialmente supunha-se que a BSE tivesse tido origem em uma doença já conhecida em ovinos desde 1732. A denominada “scrapie”. Mas essa doença jamais havia contaminado outras espécies ou mesmo o homem. Após longos estudos sobre possíveis “mutações” ou “adaptações”, não se confirmou se a doença veio mesmo dos ovinos. Muitos acreditam que ela tenha surgido mesmo em um bovino, ou em algum animal de zoológico. Em qualquer caso, a introdução desse primeiro animal na cadeia alimentar de bovinos é que deu origem a tanta confusão.

Muitos outros países europeus tiveram e continuam tendo casos de BSE. Isso porque haviam importado rações ou mesmo FCO do Reino Unido antes que se conhecessem os mecanismos envolvidos na transmissão do mal. Mas deve ser lembrado que o período de incubação da doença é muito longo: entre 2,5 e oito anos para bovinos. No homem talvez ultrapasse vinte anos. Esse dado complica muito as medidas de controle, pois, como dito acima, não se tem ainda um meio de diagnosticar o animal portador assintomático. Dessa forma, os países que importaram materiais contaminados com a PrPSc ou mesmo animais em período de incubação, tiveram casos de BSE, para seu infortúnio.

Durante a descoberta de que o homem podia se infectar houve uma redução drástica e abrupta do consumo de carne no Reino Unido. Em outros países isso também ocorreu, gerando enormes prejuízos à economia. Devido a isso, reina uma grande preocupação com as importações de carnes e derivados. Países livres de BSE têm tomado medidas severas para a não-entrada da doença. Ao mesmo tempo, mercados de carne se abrem para os países produtores livres da enfermidade. Às vezes valem mesmo lances de economia de guerra, como aconteceu com o Canadá no episódio da suspensão da importação de carne do Brasil em 2001.

A constatação, em 2002, de um caso de BSE no próprio Canadá e de um outro nos Estados Unidos, no final de 2003, traz preocupações para todo o continente americano. Importações de animais e de produtos de origem bovina desses países eram comuns à maioria dos países americanos.

O Brasil vem lucrando, ou ficando com a parte boa das crises da BSE. Inicialmente por ter ampliado o mercado de carnes. Depois por ter ampliado o mercado de soja - substituta da proteína de origem animal. Mas as medidas necessárias à não entrada da BSE no país têm que ser levadas muito a sério. Da mesma forma, a abolição de rações que contenham proteína de ruminantes é crucial medida de segurança. Nesse aspecto, deve ser ressaltado que a cama de aviário tornou-se um elemento extremamente perigoso. Por conter alguma sobra de ração dos frangos, e esta legalmente pode ter FCO, ela não pode ser utilizada para alimentação de bovinos. Esse uso fecharia o ciclo “canibal”, responsável pela propagação da BSE. Nesse caso, se algum animal infectado surgir, a disseminação vai ocorrer.

Nosso país tem uma pecuária bovina de grandes proporções e com importante envolvimento social. Milhões de pessoas vivem ou dependem da produção de leite e de carne. Portanto, enquanto houver BSE assombrando nossas vaquinhas, vamos ouvir o que os técnicos do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento têm para nos recomendar. As medidas até hoje adotadas foram todas acertadas, tanto é que o Brasil está no Grupo I da classificação da Comunidade Européia, onde é “altamente improvável a existência de BSE”. Controle severo das importações, rastreabilidade, proibição do uso de proteína de ruminante, mesmo aquela que sabemos que existe na cama de aviário, exames de animais com sintomas neurológicos ou com morte por causas não definidas, capacitação de técnicos e de laboratórios, todas essas medidas tomadas em conjunto tendem a manter o nosso status. Mas todos os envolvidos na cadeia produtiva da carne devem se engajar nessa luta. Afinal, quem poderia ser mais interessado?

Como age a proteína alterada

Tecnicamente, essa enfermidade recebe o nome de Encefalopatia Espongiforme Bovina - ou BSE, sigla proveniente do inglês. Um nome um tanto complicado, mas nada que se compare à complexidade do agente causador. Trata-se este de uma proteína priônica alterada... Bem seria mais fácil entender se fosse um vírus, uma bactéria ou um fungo, desses que se multiplicam causando lesões que prejudicam a saúde do animal resultando em uma enfermidade. Mas a tal proteína, cuja sigla - PrPSc também não diz muita coisa, tem origem em uma proteína que se faz presente, em condições normais, em neurônios e em algumas outras células - a PrPC. O fenômeno que custou a ser entendido, mas que deu um prêmio Nobel ao seu descobridor, o cientista Stanley Prusiner, consiste na transformação da proteína normal em uma outra, de conformação espacial alterada. Nessa forma alterada, a proteína se torna nociva ao funcionamento da célula e acaba por destruí-la. A destruição gradativa de neurônios resulta em perda de capacidade do sistema nervoso central e conseqüentemente resulta em uma doença grave.

Vários fatores devem ser ditos a respeito dessa proteína: uma vez alterada ela se torna extremamente resistente ao calor, aos desinfetantes, à radiação e até mesmo ao processo de esterilização que se usa para materiais cirúrgicos. Dessa forma, ela pode permanecer inalterada em produtos alimentícios utilizados para os bovinos e se tornar infectante. O termo infectante não está entre aspas porque é isso mesmo que acontece. Uma proteína, sem nenhum patrimônio genético, se multiplica, por transformar proteína normal em anormal, com um comportamento de agente infeccioso. Outras doenças também são causadas por PrPSc, tanto em animais quanto no homem. Mas são de freqüência relativamente baixa e não são contagiosas.

Antonio Carlos Alessi

Unesp – Campus de Jaboticabal

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