Vírus em macieira

Os produtores de maçã do Brasil devem estar sempre de olhos bem abertos para evitar a contaminação de seus pomares.

10.11.2015 | 21:59 (UTC -3)

A produção de maçãs no Brasil representa um dos maiores êxitos empresariais da história recente do nosso país. Alavancada com incentivos fiscais no início dos anos 70, afirmou-se como pujante segmento da nossa economia, ocupando hoje uma posição de destaque.

O clima de preocupação com infecções virais, que existia nas instituições de pesquisa européias e americanas à época, influenciou positivamente a qualidade do material utilizado num primeiro momento. Essa preocupação resultava do conhecimento dos danos causados por vírus que atingem a macieira em todas as fases da sua vida, acumulado no hemisfério norte entre os anos 1930 e 1950. Entretanto, a grande expansão dos pomares no Brasil, e a insuficiência de pesquisa e programas públicos de limpeza clonal, levou ao longo de três décadas à introdução indiscriminada e desordenada de material propagativo de procedência e sanidade questionáveis. Isso promoveu, através da propagação vegetativa, a considerável acumulação e disseminação, inicialmente não percebidas, de agentes patogênicos virais, principalmente latentes, ou assemelhados também transmissíveis pela enxertia. Os vírus e assemelhados que induzem sintomas visíveis em troncos, ramos e frutos (como depressões no lenho, ruga verde, rachadura-estrela, ferrugem e outros) foram, pela sua própria natureza, automaticamente excluídos da propagação pela ação seletora do produtor de maçãs e dos viveiristas e, atualmente, são encontrados apenas esporadicamente. Resultados de estudos feitos no RS, em SC e SP mostram que grande parte do material de macieiras em uso no Brasil está geralmente contaminado.

Nos países pomicultores da América do Sul, em geral, inexistem esquemas de controle da produção e comercialização de mudas de fruteiras comparáveis aos do hemisfério norte que garantam altos padrões de fitossanidade e boas práticas culturais, embora esteja crescendo a tomada de consciência.

Em 1970, a Organização Mediterrânea e Européia de Proteção Vegetal (EPPO) criou um Grupo de Trabalho sobre certificação para copas e porta-enxertos de fruteiras livres de vírus, que se reuniu em 1970, 1976, 1980 e 1986. Neste último encontro, que coincidiu com as primeiras medidas da União Européia (UE), foram elaboradas recomendações detalhadas de fluxogramas para o desenvolvimento de material livre de vírus e avaliações de autenticidade varietal nos países-membro. Hoje, países com programas abrangentes incluem Austrália, Bélgica, Dinamarca, Alemanha, Estados Unidos, Canadá, Espanha, França, Hungria, Holanda, África do Sul, Suíça e Inglaterra. Os esquemas em uso na Rússia e Polônia são considerados bem desenvolvidos. A Itália não possuía, até 1980, um sistema nacional de certificação de plantas e material propagativo. Entretanto, as Províncias de Bolzano e de Trento, na região Trentino-Alto Adice, implantaram um sistema de certificação para maçãs e pêras em bases voluntárias, como é hoje o sistema alemão.

O processo de limpeza clonal incluindo macieiras teve início em vários países entre 1950 e 1960. O material certificado foi regulamentado, como na Alemanha, por portarias ministeriais, mantido o controle por órgãos públicos, garantindo a partir de 1978, por cerca de 15 anos, a produção e comercialização somente de materiais livres de vírus. Na América do Norte essa política tomou corpo no IR-2 em 1955. Sediado na Universidade do Estado de Washington, o IR-2 constitui um banco de germoplasma inter-regional de material livre de vírus, do qual materiais são repassados para instituições de pesquisa e agências reguladoras que, por sua vez, os repassam para viveiros e produtores. Blocos de plantas matrizes livres de vírus estão distribuídos pelo país em agências estaduais, federais ou em viveiros particulares vinculados ao programa. Na maior parte dos programas mencionados a reindexagem de plantas matrizes se faz em intervalos aproximados de 5 anos.

Em 1993, surpreendentemente, a UE autorizou em todo seu território a comercialização, além dos tradicionais materiais “vt” (testado, seleção visual de plantas livres de vírus conhecidos, de importância econômica e visíveis em cvs. comerciais) e “vf” (livre de vírus; plantas indexadas em um número ampliado de indicadoras, livres também de vírus latentes, não visíveis em cvs. comerciais, adicionalmente submetidas a termoterapia), também do material que se conhece por “CAC” (abrev. Conformitas Agraria Communitatis). Nessa categoria garante-se apenas autenticidade varietal e que as plantas estão livres de sintomas de vírus visíveis a olho nu, algo muito próximo do “vt”. Isso representou um retrocesso, uma vez que esse material pode estar contaminado tanto com vírus latentes como também com vírus ainda não expressados durante a fase de viveiro.

Cinco anos mais tarde, os países europeus de pomicultura tradicional adaptaram suas legislações nacionais às normas da UE. Assim, a Alemanha criou portaria em 1998 conhecida como AGOZ, reconhecendo duas classes de material propagativo: “padrão”, que corresponde ao “CAC”, e “material certificado”, via de regra trata-se de “vf”. A limpeza clonal deve ser atestada por instituição pública: o procedimento de certificação contempla somente frutas de semente e caroço. A mesma portaria detalha os procedimentos aos quais devem ser submetidos materiais para limpeza; determina que material propagativo de Malus deve estar livre de “todos os vírus” conhecidos (AGOZ, anexo 2); especifica as indexagens individuais de candidata a planta-matriz (AGOZ, anexo 4), a manutenção de matrizes livres de vírus, o credenciamento de viveiros para produção e a comercialização de mudas certificadas. Conforme a AGOZ, são prescritas as seguintes indexagens para a certificação de macieiras, pereiras e Prunus spp.: 1. Malus (Maçã): ACLSV, “Depressão do Lenho” e Lenho Mole (na cv. Lord Lambourne), ASGV (na cv. Virginia Crab), ASPV/SED (na cv. Virginia Crab/cv. Spy 227), Descascamento de Platycarpa (M. platycarpa), Rachadura-Estrela, “Rough skin” e Proliferação (na cv. Golden Delicious); ApMV por avaliação visual; 2. Pyrus spp. (Pera) e Cydonia spp. (porta-enxertos): ACLSV (Pear ring pattern mosaic, “mosaico anelado da pêra”), Rachadura e necrose da casca do tronco e dos ramos, ASPV (Apple stem pitting virus = Pear vein yellows, “amarelamento da nervura da folha da pereira”) e Rachadura-estrela (Pyronia veitchii); Lenho Mole (na cv. Lord Lambourne); “Empedramento” (Pear Stony Pit), (P. communis, cv. Boscs); Declínio da Pêra (na cv. Vereinsdechant/P.calleryana); 3. Prunus spp. (Ameixa européia) em campo: “Mosaico em linha da Ameixa” (European plum line pattern) e ApMV (na cv. Ersinger, e avaliação visual), ACLSV (“Rachaduras de tronco” ou “pseudoscharka”), (na cv. Prune d’Ente), “Prune dwarf virus” e “Prunus necrotic ringspot virus” (na cv. Shirofugen); em caso de vegetação é prescrito o uso do seedling GF305 para ambas disfunções da ameixeira. A multiplicação de material básico e matrizes certificadas ocorre, cada vez mais, por viveiros particulares ou transferidos para a iniciativa privada, que também mantêm lotes de matrizes borbulheiras, enquanto a multiplicação do material pré-básico de macieiras, mantido em telados, e a certificação são feitas por órgãos públicos. Há de se observar que o material associado ao conceito “vt” foi praticamente abandonado nos países com tradição em controle e certificação, em favor do conceito “vf”, ou seja, comercialmente relevante é o material indexado, livre de todos vírus conhecidos e indexáveis. O procedimento de certificação de uma variedade é voluntário e financiado pelo dono da variedade.

Com a liberação da classe “CAC” torna-se mais arriscada a introdução de material propagativo em nosso país. Devido ao alto custo e à longa duração da limpeza clonal, é admissível que a categoria “CAC” seja canalizada, preferencialmente, para a exportação. E a contaminação com vírus na UE ainda é considerável, apesar de cerca de meio século de esforços públicos e privados de limpeza clonal. Surpreende o alto grau de infecção com vírus constatado em macieiras de produtores e viveiristas franceses em estudo que cobriu o período 1980-1990. De 250 clones testados, 62% estavam contaminados com vírus. Destes, 67,7% continham ACLSV (Vírus da mancha foliar clorótica), 41,9% SED (Epinastia e Declínio de Spy; provavelmente em mistura com o vírus das caneluras do tronco, ASPV), 36,8% Lenho Mole (agente causal desconhecido), 5,8% ASGV (Vírus do acanalamento do tronco da macieira), 1,9% ApMV (Vírus do mosaico da macieira) e 0,5% outros vírus ou patógenos assemelhados. Há de se reconhecer que houve um avanço, se compararmos esses valores aos de 1965-1980, respectivamente: total infectado, 82,7%, sendo as infecções com vírus na ordem como acima, 93%, 69,3%, 52,1%, 3,8%, 8,1% e 3,8%. Chama a atenção, entretanto, que a infecção com o vírus do acanalamento do tronco da macieira (ASGV), que tem causado perdas consideráveis em viveiros catarinenses, aumentou nos últimos 10 anos naquele país, o que pode ser explicado, em parte, pela sua baixa termossensibilidade, que dificulta sua remoção por tratamentos térmicos. A situação não se altera substancialmente quando se comparam esses dados com aqueles de clones introduzidos de outros países europeus. De 302 clones introduzidos na França no período 1980-1990, 174, ou 57,6% estavam contaminados por vírus, dos quais 77,6% com ACLSV, 38,5% com SED, 17,8% com Lenho Mole, 15,5% com ASGV, 3,4% com ApMV e 1,7% com outros patógenos virais ou assemelhados. Observa-se aqui novamente um aumento significativo da incidência de ASGV, de 8,2% (1965-1980) para 15,5% no período 1980-1990, um aumento de ocorrência de quase 100%. Esses dados ilustram por que é extremamente importante que importadores brasileiros de mudas da UE exijam o certificado de indexagem segundo a AGOZ.

No Brasil, os valores de infecções virais não são muito menos impressionantes. Em dois levantamentos independentes, em execução pela Embrapa, plantas usadas como matrizes selecionadas de pomares no RS, PR e SC foram avaliadas. Dados preliminares mostram que é alto o grau de infecção por vírus latentes do material propagativo atualmente em uso; infecções com mais de um vírus são muito comuns.

A situação do material básico propagativo de fruteiras em geral, entre outros, é um assunto ainda não resolvido no nosso país, apesar de esforços isolados para desenvolver materiais limpos. Já existem grandes viveiristas de macieiras que estão indexando suas matrizes borbulheiras. Há várias “Normas e Padrões para produção de Mudas de Fruteiras”, estaduais e federais, e programas bem sucedidos como a produção de mudas de citros em São Paulo. Via de regra, essas “normas” permanecem substancialmente inócuas, não chegando a alterar a situação da inexistência de material básico livre de vírus certificado, monitorado e utilizado para a produção de mudas de fruteiras de clima temperado somente por viveiros credenciados.

A produção de clones livres de vírus é um projeto de longa duração, que exige continuidade, o apoio e o controle institucional, o amparo legal e suporte financeiro ao longo dos anos, e a compreensão de que são esforços cujos frutos não se colhem em curto prazo. Não há produção de mudas sadias, sem limpeza clonal que garanta a qualidade do material propagativo de copas e porta-enxertos. Tem-se observado que o problema é menor nos porta-enxertos. O gargalo da produção de mudas sadias reside na ausência de matrizes certificadas, livres de vírus, o que leva os viveiristas a usarem matrizes produtoras, não indexadas, para a retirada de borbulhas para a enxertia. O resultado é conhecido. Como comprovamos experimentalmente, dos pomares altamente infectados, as viroses latentes se propagam milhões de vezes nas mudas de viveiros não fiscalizados, para fechar o círculo vicioso em novos pomares infectados.

Os danos causados por vírus estão comprovados, desde falhas na “pega” da enxertia no viveiro, até reduções consideráveis de produção e qualidade dos frutos (redução de calibre). Acresce que mudas infectadas por vírus, segundo experimentos europeus, são mais suscetíveis a infecções fúngicas e sua capacidade de utilização de nutrientes é reduzida, aumentando o custo de produção e o impacto ambiental da atividade pomicultora. No caso da passagem de borbulhas infectadas por vírus latentes de uma combinação tolerante (M9) para um porta-enxerto sensível (Maruba-kaido, por exemplo), a perda é total; geralmente ocorre grande parte das mortes no viveiro. Quando isso não ocorre, o dano é maior porque inclui os custos do plantio e dos tratos culturais de uma planta de vida curta, como foi constatado em plantas de oito anos em Santa Catarina.

No controle de vírus de fruteiras lenhosas, tropicais ou temperadas, persiste o conceito de “liberdade de vírus”, uma vez que não há terapia pós-infecção. Uma planta virótica representa fonte de inóculo durante toda sua existência e não tem cura. Só é cabível a sua remoção. A única estratégia de controle praticável é a da prevenção. Ainda não existe um bom substituto para uma muda de excelente qualidade, livre de vírus. Na produção integrada (certificada) as “Diretrizes...” na Alemanha, já em 1990 prescreviam, no ítem “cultivares e porta-enxertos”, o “uso exclusivo de material livre de vírus” (Comissão Federal para Fruticultura e Olericultura, “Diretrizes para a produção integrada controlada de frutas na República Federal da Alemanha”, Nov.1990). Isso ilustra o quão relevante e urgente é para o Brasil a limpeza de clones de fruteiras, em especial de macieiras.

A Embrapa Uva e Vinho tem em execução um programa de limpeza clonal e produção de material propagativo de cultivares de copas e porta-enxertos de maçã. A lista de cultivares para limpeza, elaborada e proposta pela Associação Brasileira de Produtores de Maçã e Associação Gaúcha de Produtores de Maçã (ABPM e AGAPOMI), contém 18 cvs. de copas e 5 cvs. de porta-enxertos. Em 2001 iniciou-se a excisão e enxertia de ápices caulinares, tecido não meristemático, oriundos de plantas submetidas à termoterapia de ar quente. Paralelamente, foram aclimatados os primeiros clones de cultivares obtidos via cultura de meristemas, oriundos do laboratório de cultura de tecidos da Embrapra Clima Temperado. Após a excisão, os meristemas são transferidos para a Embrapa Uva e Vinho, onde se processa o enraizamento “in vitro”, seguido de aclimatação.

A indexagem dessas plantas (biológica, por ELISA e por PCR) será iniciada no decorrer de 2002. A indexagem biológica, o mais longo dos procedimentos de limpeza, requer a avaliação de no mínimo três enfolhações para que uma matriz receba o selo “livre de vírus”. Segue-se uma avaliação de autenticidade varietal por uma comissão técnica indicada pelas associações de produtores de maçãs. Esse procedimento é relevante, uma vez que é comum ocorrerem desvios de cor dos frutos, formação de estrias, alteração do hábito da planta, das folhas e das flores e até de produtividade de clones de porta-enxertos (número de rebentos por planta-mãe) em decorrência do tratamento térmico.

Osmar Nickel,

Embrapa Uva e Vinho

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