Caderno Técnico: Agricultura do Futuro

Como construir uma agricultura sólida e sustentável

11.07.2019 | 20:59 (UTC -3)

Desenvolvimento sustentável

Perspectivas da Nova Agricultura - O papel da pesquisa na União Europeia


A agricultura deve atender às mudanças nas necessidades da sociedade, não somente em termos de consumo, mas também nas questões ambientais relacionadas à produção agrícola, e assegurar produtividade. Garantir a sustentabilidade ambiental da agricultura é o foco das políticas e medidas europeias .

Isto faz parte de uma visão de longo prazo sobre pesquisa e inovação implementada na União Europeia (UE) por meio do programa de pesquisa Horizon 2020 (H2020). O objetivo é conduzir a pesquisa agrícola em estreita conexão com o contexto e os desafios sociais em sentido amplo. Isto está reunido em cinco prioridades estratégicas (Figura 1). Este contexto será particularmente favorável ao apoio de práticas agroecológicas e à agricultura orgânica, reforçando simultaneamente a proteção do ambiente, em especial, promovendo ações de combate e adaptação às alterações climáticas.


Colocando a nova visão de agricultura em ação

Nas próximas décadas, mudanças profundas na agricultura devem ser implementadas para promover a proteção da biodiversidade e amenizar os riscos associados ao uso de pesticidas químicos convencionais. Também está claro que a agricultura está altamente exposta às mudanças climáticas atuais, já que as atividades agrícolas dependem diretamente dessas condições. São também necessárias medidas para suavizar os efeitos das alterações climáticas. Estas tendências apontam a necessidade de mais pesquisas sobre sistemas agroecológicos funcionais, incluindo os de produção de plantas sem agroquímicos e inovação agrícola.

Redução de pesticidas comprometida na Europa

A redução de pesticidas na agricultura está no centro da legislação recentemente adotada pela União Europeia. A Diretiva 2009/128/EC do Parlamento Europeu prevê uma série de ações para alcançar a utilização sustentável dos pesticidas, reduzindo os riscos e os efeitos à saúde humana e ao ambiente. Já estão em curso, medidas tanto em nível da União Europeia como nacionais, incentivando a utilização do manejo integrado de pragas e uso de estratégias não químicas. Estas medidas são apoiadas pelas Políticas de Pesquisa Europeia, por meio do programa H20202, e por medidas nacionais. Como exemplo, na França, os esforços concentram-se principalmente no Plano Ecophyto, que já evidencia uma redução de 20% a 30% no uso de pesticidas alcançados por alguns agricultores. A generalização desses resultados para toda a agricultura é a prioridade das políticas atuais. É também uma resposta à sociedade, porque os produtos para proteção de plantas são frequentemente considerados pelos cidadãos como prejudiciais à saúde humana e ao ambiente.

Alavancas da Agroecologia como ponto central

Como disciplina científica, a Agroecologia foi construída pelo cruzamento entre a Agronomia e as Ciências Ecológicas, mas também mobiliza as Ciências Sociais em apoio a concepção e gestão de agroecossistemas sustentáveis. Um de seus princípios básicos é buscar maior biodiversidade funcional para melhorar o equilíbrio biológico. A Agroecologia não se baseia na abordagem de substituição dos pesticidas, mas na otimização do equilíbrio biológico de forma a reduzir o desenvolvimento de pragas. A tendência da política da União Europeia é estimular a inovação e apoiar a pesquisa, para dar suporte à produção agrícola ecológica e à agricultura orgânica . 

Pesquisa em mudanças climáticas: predição e amenização dos efeitos

Novas condições ambientais geradas pela mudança climática global afetarão os sistemas de cultivo de várias maneiras. Não só as culturas e cultivares terão de se adaptar a temperaturas mais altas e episódios de seca, mas sabe-se que muitas pragas artrópodes poderão ser favorecidas por essas condições. Este é o caso de muitos insetos e ácaros para os quais as previsões dizem que seu impacto aumentará. Como exemplo, a ação internacional Genomite (nova geração de ferramentas sustentáveis para o controle de ácaros-praga emergentes favorecidos por mudança climática) , financiada pela União Europeia, aborda algumas dessas questões, conforme resumido no box abaixo.

A DIMENSÃO GLOBAL DA AGRICULTURA

Tendo em conta a política científica da União Europeia, a nova agricultura será mais sustentável, com práticas que levem em conta as ânsias sociais pela saúde humana e pela proteção ao ambiente. Fica claro que esses objetivos de desenvolvimento sustentável, embora enquadrados por políticas da União Europeia, têm implicações e correlações em nível global. A sustentabilidade é claramente diferente nos principais países produtores de commodities agrícolas, devido a diversos fatores, como as diferentes formas de utilização das áreas, clima, contexto político etc. Com a globalização, o mundo está interconectado, os mercados mudam, as exigências de importações mudam. Colocar essa nova visão da agricultura em ação, não se baseia em uma única solução, mas em um equilíbrio de soluções para alcançar a sustentabilidade. Esta é uma tarefa desafiadora, mas realista. Requer novas abordagens nas quais os atores do sistema alimentar devem colaborar para desenvolver soluções adaptadas localmente. Prioridades são reforçadas para algumas culturas pela inserção de novas tecnologias digitais, com potencial disruptivo da atual agricultura. Este conceito inovador está sendo desenvolvido atualmente por meio de várias iniciativas e projetos-pilotos. Um exemplo é a vinícola Mediterrânea em Montpellier, na França .

Efeito cascata do impacto da mudança climática na distribuição de pragas agrícolas

Projeção de T. evansi (a) em 2050 (Scenario CSIRO MK 3.0) na bacia mediterranea (b: Migeon et al., 2009). Manejando o agroecossistema, incluindo a introdução de ácaros exóticos predadores Phytoseiulus longipes (c) na área invadida, são métodos em estudo para controle destas pragas destrutivas em solanáceas (d: plantas de tomate cobertas de teias de ácaros).
Projeção de T. evansi (a) em 2050 (Scenario CSIRO MK 3.0) na bacia mediterranea (b: Migeon et al., 2009). Manejando o agroecossistema, incluindo a introdução de ácaros exóticos predadores Phytoseiulus longipes (c) na área invadida, são métodos em estudo para controle destas pragas destrutivas em solanáceas (d: plantas de tomate cobertas de teias de ácaros).

Prever o potencial de pragas invasivas sob cenários de mudanças climáticas é necessário. Como exemplo, o ácaro vermelho do tomate, Tetranychys evansi, nativo da América do Sul, tem emergido como nova praga danosa em áreas mais temperadas do planeta, como na Europa. Há provas que diferentes genótipos de T. evansi estão respondendo ao clima de diversas formas, e isso tem permitido às populações adaptarem-se e tornarem-se invasivas (Migeon et al., 2015). Modelos de distribuição de nichos ajudam a predizer a influência das mudanças climáticas sobre essas transições em um futuro próximo (Meynard et al., 2013).

Os processos de expansão e adaptação de pragas e também de inimigos naturais são fundamentais para entender o impacto que pragas importantes de cultivos agrícolas têm ou terão nas populações, comunidades e ecossistemas sob novas condições climáticas.

Maria Navajas,

Mundo de possibilidades

Desafios e oportunidades na agricultura na América Central e na Bacia do Caribe

Uma rápida revisão sobre a agricultura na região, suas deficiências, vantagens competitivas e o caso particular de Porto Rico serão discutidos em relação às pressões e oportunidades geradas a partir de uma nova e complexa era tecnológica. Historicamente, várias culturas agrícolas importantes, tais como milho, cacau, feijão, batata e abóbora, foram originadas e selecionadas ao longo do tempo na América Central e no Caribe. Apesar das limitações em área e da diminuição da contribuição ao Produto Interno Bruto (PIB), a agricultura é crucial para essa região que abriga uma população de aproximadamente 80 milhões de pessoas, entre 27 nações insulares e sete países da América Central. As principais culturas, que ocupam grandes áreas na região, costumam ser cana-de-açúcar, banana, coco, café, arroz e tabaco. Os vegetais, como tomates, pimentas, cucurbitáceas e raízes, são cultivados principalmente para o consumo local ou como cultura de rápido investimento.

A agricultura regional é severamente impactada pela globalização e as mudanças climáticas. Localizada entre as latitudes de 13°10’N de Barbados e 25°1’N das Bahamas, várias safras podem ser colhidas, e, geralmente, condições climáticas amenas prevalecem ao longo do ano. As variações de precipitação geográfica e a interação com a altitude geram uma ampla gama de microclimas regionais. Além disso, solos altamente diversificados permitem e ajudam a explicar a rica biodiversidade natural observada na região. As vulnerabilidades à segurança alimentar e nutricional na região, impulsionadas por condições climáticas abruptas e eventos extremos, como furacões e secas, contribuiu para um aumento dos processos migratórios. Como esperado, novas ondas de globalização são percebidas, de forma diferente entre os diferentes atores das regiões. Portanto, a preparação e a capacidade de responder a novos desafios e buscar novas oportunidades variam muito na região.

Diferentes desenvolvimentos agrícolas têm reformulado os métodos de produção de alimentos e bens em todo o planeta. O aumento e a sustentabilidade das safras têm permitido a ocupação de diferentes regiões, uma melhor nutrição e a oferta de mão de obra para exploração de novos empreendimentos e áreas. A expansão das monoculturas, a crescente escala de produção e as redes logísticas multinacionais de produção em cadeia têm impactado a produção de alimentos globalmente, aumentando a dependência local na importação de alimentos básicos.

Diferentes desenvolvimentos agrícolas têm reformulado os métodos de produção em todo o planeta
Diferentes desenvolvimentos agrícolas têm reformulado os métodos de produção em todo o planeta

Considerando a estética das paisagens caribenhas e que a estética é um valor universal aceito por todos os indivíduos, as recentes e crescentes ligações entre agricultura e turismo, criaram um importante fluxo de receita, além da agricultura local. Vários países da região estão integrando a indústria da hospitalidade e a agricultura. Porto Rico é o único no Caribe que segue o Sistema Regulatório Federal e Estadual dos EUA, para detectar pragas que entram na ilha e aplicar a regulamentação necessária. Essas vantagens comparativas iniciais, clima adequado durante todo o ano, disponibilidade de mão de obra qualificada, associadas a um ambiente de negócios, apoiaram o estabelecimento e a expansão de uma das maiores operações de biotecnologia agrícola nos Estados Unidos. 
Porto Rico é um importante centro de pesquisa e desenvolvimento de inovações da indústria. As estimativas da própria indústria mostram que aproximadamente 85% de todas as sementes mundiais das principais culturas, de empresas que operam na ilha, passam por suas instalações locais de pesquisa e desenvolvimento.

Com base em dados de 2016, cerca de 3.500 hectares de terra, tanto próprios quanto arrendados, são usados pela PR Agbiotech - e aproximadamente 4.700 pessoas são direta e indiretamente empregadas em trabalhos locais, o que gera mais de US$ 130 milhões anualmente para a economia da região. Recentemente, com exigências crescentes de rastreabilidade de processos, necessidade rigorosa de controle da segurança alimentar e restrições fitossanitárias à introdução de pragas e doenças nocivas, novas tecnologias e processos têm ganhado espaço.

A chamada Agricultura 4.0, sociedade da informação, trouxe o uso mais amplo do Sistema Global de Navegação por Satélite (GNSS), incluindo, por exemplo, o GPS, Glonass, Galileo, Beidou e outros, estabelecendo a agricultura de precisão. A crescente conscientização e o uso na agricultura de sensores, inteligência artificial, Machine Learning, Internet of Things(IoT), robótica e automação, Big Data e Analysis, sistemas de triagem de alto rendimento (HTS), entre outros, são uma realidade. Existe uma nova proposta de sociedade 5.0, tendo o humano no centro da tomada de decisões e integrando os espaços cibernéticos (virtuais) e físicos. Este novo passo tem por objetivo equilibrar o avanço econômico com a resolução de problemas sociais e ambientais. Cenários futuros estarão evoluindo constantemente em complexidade e exigindo empreendedores com visão estratégica, altos padrões éticos e conhecimento, planejamento efetivo para a implementação de avanços e treinamento contínuo para uma força de trabalho altamente motivada e qualificada.

Jose Carlos Verle Rodrigues

Desafios de desmistificar

A importância de entender mal-entendidos: visões societárias e inovação agrícola

Existem muitos desafios a serem enfrentados quando se gera soluções biotecnológicas para problemas agrícolas. Pegando como exemplo os eventos de biotecnologia para controle de pragas, surpreendentemente, para alguns, os desafios mais difíceis não são de ordem biológica ou de natureza agrícola, mas sim sociais. Sem o envolvimento ativo e bem financiado dos cientistas sociais, a implementação da Biotecnologia moderna na agricultura será seriamente atrasada ou interrompida por completo.

O caso dos Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) na agricultura é um bom exemplo que ajuda a entender como as visões da sociedade podem afetar a regulamentação, as políticas e os mercados globais. Muitas vezes, cientistas e acadêmicos descartam a percepção pública e as questões sociais, considerando-as pouco importantes, irrelevantes ou tangenciais para a implementação de soluções biotecnológicas na agricultura. A história dos OGMs mostrou que, sem a compreensão e aceitação do público, até mesmo as abordagens mais sólidas da Biotecnologia para o controle de pragas podem ser interrompidas.

Pesquisas realizadas por cientistas sociais revelaram que fatores, tais como a percepção pública de risco, diferenças nas visões de mundo e pensamento grupal ou tribal, podem efetivamente explicar a opinião pública sobre Biotecnologia na agricultura, de forma mais convincente do que simplesmente considerar o público como analfabetos científicos. As estratégias que os cientistas utilizaram para obter aceitação pública da Biotecnologia, tradicionalmente, consistiu em transferir informações. Vários anos de ativismo anti-OGM demonstram que reverter a rejeição da Biotecnologia apenas fornecendo informações, não funcionou. Surpreendentemente, cientistas sociais mostraram que fornecer mais informações para pessoas fortemente opostas à Biotecnologia, aumenta a sua oposição. As razões que explicam esse achado são complexas e envolvem visões políticas, experiências passadas, fatores psicológicos e sociais, bem como sistemas de governança e confiança das pessoas nas instituições. Os cientistas naturais e agrícolas estão mal equipados para estudar essas questões e, consequentemente, são ineficazes na mudança da percepção pública das aplicações da biotecnologia na agricultura.

Diversos setores de Biotecnologia aprenderam com seus erros e, atualmente, é comum concordar que o envolvimento da comunidade é necessário, antes de qualquer lançamento de soluções biotecnológicas para problemas de pragas locais, regionais ou globais. Essa compreensão, entretanto, não torna o conflito entre a percepção pública e a Biotecnologia menos desafiador. Só recentemente se começou a entender como as percepções do público são formadas, o quanto elas são difíceis de mudar e como a informação factual é irrelevante na formação do pensamento grupal. É preciso que as agências governamentais que financiam a pesquisa em Biotecnologia incluam parte de seus subsídios para estudos envolvendo aspectos sociais.

Devido aos vários desafios urgentes que o nosso planeta enfrenta, entender a percepção e a persuasão pública é mais crucial do que nunca. As estratégias atuais e futuras para lidar com os efeitos das mudanças climáticas na segurança alimentar, na saúde humana e animal e na conservação da biodiversidade, exigirão políticas inovadoras e eficazes. Se a Biotecnologia fizer parte da solução para esses problemas, os órgãos reguladores locais e globais precisarão desenrolar rapidamente. A velocidade requerida para que uma mudança efetiva ocorra, exigirá aceitação pública. Sem as Ciências Sociais trabalhando lado a lado com as Ciências Naturais, será impossível alcançar uma mudança social global na velocidade necessária.

As Nações Unidas têm declarado que quando se trata de alcançar seus objetivos globais de desenvolvimento sustentável, os negócios, como de costume, não são uma opção. Não é possível mais ignorar as consequências das externalidades na agricultura. As soluções mais promissoras para evitar atingir pontos de inflexão perigosos são fornecidas pela Biotecnologia. É crucial poder implementar políticas revolucionárias baseadas na ciência de forma rápida. Mas será que conseguiremos fazer isso ou estaremos presos em nossos sistemas de governança?

Raul F. Medina

Correção de curso

Agricultura industrial na América do Norte: por que o agronegócio e a ilusão de alimentar o mundo estão nos conduzindo na direção errada

Possivelmente, o adjetivo mais usado na Agronomia atualmente é a palavra “sustentável”. Porém, quase nada que atualmente fazemos na agricultura norte-americana em escala industrial é verdadeiramente sustentável. A agricultura altamente mecanizada de hoje é baseada em combustíveis fósseis baratos. Os combustíveis fósseis também são matérias-primas fundamentais para a produção de agroquímicos e fertilizantes inorgânicos, que, por sua vez, são derivados da mineração de reservas finitas de fosfato e potássio. 

O aumento de produtividade é passado aos agricultores como uma maneira de melhorar sua lucratividade, mas tem tido resultados exatamente opostos. Atualmente, os EUA produzem o dobro de grãos de que necessitam, a enormes custos ambientais, o que torna os agricultores dependentes da exportação de excedentes, com os preços de exportação sujeitos aos caprichos do mercado internacional, bem como à volatilidade de preços produzida pelos especuladores de commodities. As externalidades associadas à agricultura industrial são enormes - a agricultura responde por 40% de todas as emissões de gases de efeito estufa e é o maior contribuinte para a poluição da água doce - e nenhum desses custos é suportado pelos produtores ou pelas indústrias que os apoiam. As empresas do agronegócio não estão interessadas em uma agricultura verdadeiramente sustentável, porque seus lucros dependem de um modelo de agricultura baseado em insumos. O impacto da agricultura corporativa na saúde da sociedadetem sido negativo. Alimentos de baixo custo em detrimento de uma correta alimentação, que é cara, contribuem para doenças relacionadas a alimentos, como diabetes e obesidade.

As políticas agrícolas nacionais nos EUA, supostamente destinadas a garantir a segurança alimentar local e proporcionar estabilidade econômica aos agricultores, tiveram exatamente o efeito oposto. A dívida agrícola está em níveis recordes, o agricultor médio norte-americano tem agora 58 anos e está envelhecendo, e o retorno do investimento para terras agrícolas atualmente é de apenas 1% a 2% ao ano. Os custos dos insumos agrícolas aumentaram ao longo dos últimos 30 anos, mas os preços dos grãos permaneceram praticamente inalterados durante esse período. Uma grande fração da receita agrícola é agora absorvida pelas corporações do agronegócio, embora essas empresas não compartilhem nenhum risco. A grande maioria dos subsídios governamentais, diretos e indiretos, vai para três culturas de grãos: milho, soja e trigo. Isso garante um suprimento constante de matéria-prima de baixo custo para a indústria de fast food, para a qual a maioria dos norte-americanos já terceirizou a responsabilidade por sua nutrição pessoal. Os produtores de carne bovina, suína e de frango se tornaram vítimas do poder de monopsônio de algumas grandes corporações de carnes que controlam a demanda e o acesso ao mercado e, portanto, o preço dessas commodities. 

O modelo corporativo de criação de gado em confinamento nos EUA (Cafos) tem encorajado os produtores a expandir instalações e assumir dívidas em troca de contratos para fornecer para os gigantes corporativos, que podem ditar não apenas preços, mas práticas de produção. Os produtores têm sido reduzidos a funcionários contratados em suas próprias terras; as empresas efetivamente possuem os animais, enquanto os agricultores ficam com o lixo animal, sem a capacidade de descartá-lo.

Um fator-chave nas decisões de plantio de fazendeiros é a disponibilidade de seguro agrícola. Oitenta por cento do custo dos prêmios de seguro das colheitas é pago pelo público contribuinte e, no entanto, o seguro está disponível apenas para as culturas básicas de cereais que já são superprodutivas, e não para as frutas e os vegetais frescos, cujo consumo deve ser encorajado. Uma política nacional de destino da produção excedente das fazendas norte-americanas na forma de ajuda internacional, “doação”, prejudicou economias agrícolas em desenvolvimento pelo mundo, ao tornar a produção local antieconômica. Não é difícil prever quais os efeitos da exportação de práticas agrícolas industriais para os países em desenvolvimento. As fazendas ficarão cada vez menores, a qualidade dos alimentos diminuirá e a população ficará cada vez mais desconectada de seu fornecedor de alimentos.

Se quisermos “renaturalizar” a agricultura, devemos reduzir o uso de insumos externos, frear o poder das empresas do agronegócio, tornar as pequenas e diversificadas produções agrícolas rentáveis novamente. A agricultura industrial deve começar a pagar por suas externalidades ambientais e parar de perseguir incessantemente a maximização da produtividade à custa da qualidade de alimentos e impactos ambientais.

Atualmente os EUA produzem o dobro de grãos que o país necessita
Atualmente os EUA produzem o dobro de grãos que o país necessita

Jean P. Michaud,

Equilíbrio nutricional

Desafios da nutrição de plantas no contexto da nova agricultura

A agricultura no transcurso da sua história experimentou transformações que apresentaram características disruptivas, as quais suportaram o crescimento populacional global. Assim, no transcurso do século 20 a população mundial quase que quadriplicou (Smil, 1997), demandando da agricultura o incremento de área e de produtividade das principais culturas. Entre as inovações tecnológicas no século passado que possibilitaram o incremento da produção de alimentos, destaca-se a síntese da amônia através do processo industrial desenvolvido por Harber-Bosh, que combinou os gases nitrogênio e hidrogênio sob elevada temperatura e pressão. Porém, o uso em larga escala da síntese da amônia evolui lentamente, devido aos elevados custos envolvidos na sua fabricação industrial. Somente a partir da década de 1960 que importantes inovações permitiram uma economia de até 90% da energia elétrica consumida, aliadas a simplificações no processo industrial que resultaram em uma produção em larga escala, viabilizando o consumo de nitrogênio por culturas como milho, arroz e trigo que suportaram o vertiginoso crescimento populacional (Figura 1). Em síntese, além da descoberta de uma inovação tecnológica, para que ela resulte em um incremento abrupto na produção de alimentos, faz-se necessário que seja adotada pela grande maioria dos agricultores, em diferentes partes do mundo.

Figura 1 - Crescimento populacional no transcurso do século 20 e o uso de nitrogênio na agricultura a partir da síntese industrial de amônia (Harber-Bosh). Fonte: Smil (1997)
Figura 1 - Crescimento populacional no transcurso do século 20 e o uso de nitrogênio na agricultura a partir da síntese industrial de amônia (Harber-Bosh). Fonte: Smil (1997)

Os desafios do século 21 para a agricultura ainda são maiores que os enfrentados até então. De acordo com a FAO, para responder à demanda de 9,6 bilhões de habitantes no planeta em 2050, será necessário um incremento acelerado na produção de alimentos e na eficiência no uso da água e da terra. Como estes recursos são finitos, o incremento da produção de alimentos deverá ser obtido principalmente pelo aumento da produtividade dos cultivos. Com isto, prevê-se que a agricultura deverá ser uma área de muita inovação tecnológica durante o corrente século. A sintonia fina entre o melhoramento genético e o manejo de solo, com objetivo de nutrição, vigor e sanidade das plantas, é essencial para sustentar elevadas produtividades em diferentes ecossistemas. Este objetivo fica comprometido quando se constata que aproximadamente 30% dos solos em nível mundial encontram-se com algum nível de degradação, que compromete em parte a eficiência das inovações tecnológicas e seu impacto no aumento da produtividade. A degradação física do solo, representada pela compactação, reduz a sua taxa de infiltração, agrava os problemas com erosão e compromete a eficiência do uso da água, com reflexos negativos na estabilidade temporal da produção de alimentos. A degradação biológica do solo está associada à reduzida diversificação dos agroecossistemas, que ocasiona a perda de aproximadamente 50% do estoque original de matéria orgânica, da atividade e diversidade da comunidade microbiana, agravando a pressão de patógenos e demandando pesados investimentos em proteção de plantas. 

Juntas, a degradação física e a biológica comprometem a eficiência dos fertilizantes aportados e de outros insumos utilizados no processo produtivo. Com isto, estima-se que atualmente estamos sendo eficientes em explorar apenas 30% a 40% do potencial produtivo das modernas cultivares. Acrescem-se a este complexo cenário as mudanças climáticas que exigem sistemas resilientes a eventos extremos, como déficits hídricos prolongados, elevadas temperaturas e chuvas intensas. 

Existe o risco de que as novas tecnologias possam falhar em entregar o incremento de produtividade projetado se forem implementadas em um solo degradado, sem vida e com baixo teor de matéria orgânica. Portanto, a nova agricultura do século 21 deverá ter na sua agenda a revitalização dos solos com base físico-biológica, para incrementar a eficiência dos insumos e a rentabilidade (Montegomery, 2017). Interessante, que com as mesmas tecnologias disponíveis, o seleto grupo de agricultores mais produtivos tem obtido produtividades que são de 90% a 175% superiores à média brasileira (Figura 2) (Mark Esalq, 2018). Este fato, pode ser um importante sinalizador de que as atuais e futuras tecnologias podem ter um desempenho muito superior se forem aplicados em um ambiente desenhado para elevada eficiência. 

Figura 2 - Produtividade média das culturas da soja, trigo e milho no Brasil e nos estabelecimentos agrícolas mais produtivos. Fonte: adaptado de MarkEsalq artigo de Eduardo Spers e Caetano Haberli
Figura 2 - Produtividade média das culturas da soja, trigo e milho no Brasil e nos estabelecimentos agrícolas mais produtivos. Fonte: adaptado de MarkEsalq artigo de Eduardo Spers e Caetano Haberli

As novas tecnologias representadas pela agricultura digital irão trazer maior assertividade às tradicionais práticas agrícolas, por permitirem diagnóstico com elevada resolução espacial, alta frequência de coleta de dados, rastreabilidade, e análise acurada da eficiência dos insumos e do desempenho das modernas cultivares, permitindo que a cada safra a interpretação dos resultados seja mais eficiente e resulte em maior rentabilidade. Uma nova agricultura deverá emergir desta constante avaliação e reavaliação de processos, tecnologias e insumos. 

O desafio de reunir as diferentes vertentes da agricultura, como agricultura conservacionista, agricultura de precisão, agricultura sustentável, agricultura com intensificação e agricultura adaptada às mudanças climáticas, em uma única base, será um dos principais produtos da agricultura digital. Para tanto, deverá estar acessível a todos os estratos de produtores. A aproximação do produtor rural ao consumidor urbano, através da oferta da rastreabilidade e de outras ferramentas digitais, poderá demandar ajustes nos sistemas produtivos, que transcendem a busca pela produtividade, mas que incluam a qualidade, o valor nutricional e o baixo risco à saúde por contaminantes. Plantas nutridas equilibradamente, produzidas em solos que mantêm sua qualidade preservada, são bases para a nova agricultura que emergirá com a adoção da agricultura digital.

Telmo Amado,

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