Manejo de raquitismo-das-soqueiras na cana

Medidas de controle urgentes, como o uso de material propagativo sadio, são necessárias para enfrentar o problema

25.09.2020 | 20:59 (UTC -3)

O raquitismo-das-soqueiras é uma doença silenciosa e traiçoeira, capaz de provocar sérios danos sem ser percebida, cuja incidência tende a explodir com a mecanização da colheita de cana. Em levantamento realizado ao longo de três safras, apenas com a cultivar mais plantada, RB867515, o prejuízo estimado pode superar um milhão de dólares. Medidas de controle urgentes, como o uso de material propagativo sadio, são necessárias para enfrentar o problema.

A mecanização da colheita da cana-de-açúcar tem sido praticada pela totalidade das usinas e de seus fornecedores da região Centro-Sul, a principal produtora do Brasil. Essa mudança da colheita manual de cana queimada para mecanizada fez com que restos culturais ficassem no campo, já que a colheita é feita em cana crua, ou seja, sem queima. Esses restos têm muitos efeitos benéficos, como aumento da matéria orgânica e da umidade do solo, diminuição da temperatura das camadas superficiais, da erosão e da emissão de dióxido de carbono do solo, entre outros. No entanto, pouca informação chega aos produtores em relação às consequências dessa mecanização sobre as doenças da cultura.

Dentre as inúmeras moléstias que atacam a cana-de-açúcar, o raquitismo-das-soqueiras, causado pela bactéria fastidiosa Leifsonia xyli subsp. xyli, é a doença que mais vai aumentar com a mecanização da colheita. Estudo realizado nos Estados Unidos mostrou que as lâminas da colheitadeira foram capazes de disseminar a bactéria a uma distância que variou de 3,9 metros a 7,3 metros a partir de uma touceira doente. Junte-se a esse fato, a dificuldade de se fazer a desinfecção das lâminas quando da mudança de talhões. Assim, a existência de um único talhão com raquitismo-das-soqueiras em uma usina pode fazer com que a doença se espalhe para outros campos.

Colmos colhidos de parcelas com raquitismo-das-soqueiras
Colmos colhidos de parcelas com raquitismo-das-soqueiras

Outros fatores que reforçam a importância dessa doença incluem: a) Todas as variedades são atacadas pela bactéria; b) Dificuldade de identificação no campo das planas doentes, devido à ausência de sintomas característicos; c) Dano à produtividade com aumento dos cortes, justificando seu nome: raquitismo-das-soqueiras. Essas características fazem com que a doença seja considerada a mais traiçoeira e perigosa dentre todas da cultura, qual seja, sua capacidade de causar danos sem ser percebida. Dados de quebra de produtividade devido à doença em outros países mostraram queda de 41% na África do Sul, 37% na Austrália, 33% nos Estados Unidos e de até 50% na Índia. No Brasil existe estudo que mostra dano de 26% na produtividade da RB867515.

A despeito de todas essas informações, a real importância da doença para a indústria canavieira nacional ainda não podia ser avaliada devido à ausência de dados que indicassem quão disseminado estaria o raquitismo-das-soqueiras nos campos comerciais brasileiros. Vale lembrar que levantamentos realizados anteriormente focaram somente talhões destinados à multiplicação de material vegetativo, não mostrando, portanto, uma visão real do problema. Assim, para suprir essa deficiência, o laboratório (LAGEM/UFSCar) fez uma parceria com a  empresa Syngenta para estudar o grau de disseminação da doença nas usinas do Centro-Sul do Brasil. Para tanto foram coletadas 92.114 amostras, cobrindo 13.173 hectares em 1.154 talhões de 50 usinas de cinco estados (São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Paraná, Mato Grosso do Sul) durante os anos de 2012 e 2013. Nesse trabalho, o tamanho da área e o número de talhões amostrados obedeceram a importância de cada variedade no cenário atual. Essa foi a razão para a RB867515 ter sido a cana com maior área amostrada (3.001 hectares e 242 talhões), seguida de SP81-3250 (2.466 hectares e 213 talhões) e, RB855453 (2.037 hectares e 162 talhões); RB855536, RB855156, RB966928, RB835054 e RB92579 completaram a lista das variedades examinadas.

Em uma primeira análise dos dados, 121 talhões (10,5%) de um total de 1154 amostrados estavam contaminados com a bactéria causadora do raquitismo-das-soqueiras, representando 11,3% da área total avaliada. Quando esses valores foram distribuídos por variedade, a RB92579 se destacou por apresentar 17,3% de talhões com a doença, seguida por RB855536 (13,2%), RB966928 (12,8%) e SP81-3250 (11,3%) (Tabela 1). Mas o dado que mais chamou atenção foi que 58% das usinas amostradas (29 de um total de 50) tinham pelo menos um talhão com a presença da bactéria. Esse é um aspecto muito importante pois a presença de um único talhão infectado em uma  usina vai fazer com que a doença se espalhe para todas as variedades durante a colheita.

Também foi possível estudar a incidência da bactéria de acordo com os cortes da cana-de-açúcar (Tabela 2). De todos os dados dessa tabela o mais importante é referente à cana-planta, pois não foi possível examinar a incidência da doença em função dos cortes já que os talhões avaliados não foram os mesmos nos dois anos do estudo. Assim, 9,4% dos talhões de cana-planta apresentaram-se contaminados com a doença, correspondendo a 10,4% do total de área de cana-planta amostrada. O que chama atenção nesses dados é que 32% de todas as usinas estudadas empregaram mudas contaminadas com a bactéria do raquitismo na reforma de canaviais. A lógica para tal conclusão se baseia no fato do patógeno não conseguir sobreviver em restos culturais e não ter inseto vetor para sua disseminação fazendo com que material propagativo seja o único meio de entrada da doença em área nova. Dessa forma, uso de material propagativo sadio é a principal medida para controlar a doença.

Para a produção de cana-de-açúcar, a região Centro-Sul é a mais importante do Brasil. Nesse estudo, essa região foi sub-dividida em quatro sub-regiões para que a disseminação da bactéria do raquitismo fosse melhor avaliada (Tabela 3). O cerrado (o estudo abrangeu Goiás e Minas Gerais) foi a região que mostrou a maior porcentagem de talhões infectados (16%) e também a maior área (16,7%); porém, o mais impressionante é que 81,8%  (9 das 11 usinas) tinham pelo menos um talhão infectado com a bactéria. A região Sul, que englobou Sul do estado de São Paulo e os estados do Paraná e Mato Grosso do Sul, também mostrou altíssima porcentagem (70%) de usinas com pelo menos um talhão doente. Por outro lado, metade das usinas analisadas nas regiões Central e Oeste do estado de São Paulo apresentaram-se com talhões com raquitismo-das-soqueiras, demonstrando que a doença é uma preocupação em toda a região Centro-Sul.

O fato desse levantamento ter considerado as principais variedades, divisão em sub-regiões, ciclo de corte da cana e grande número de usinas proporcionou uma visão abrangente, robusta e bastante realista da incidência de raquitismo-das-soqueiras em campos comerciais do Centro-Sul brasileiro. Esses cuidados também permitiram calcular, pela primeira vez e com segurança, a perda econômica que a doença está causando. Para isso foram utilizadas informações referentes à variedade RB867515, que é a mais cultivada no País. Segundo dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), a área plantada com essa variedade na safra 2012-2013 foi de 1,5 milhão de hectares ou 29,1% de toda área com cana. De acordo com o levantamento, 5,5% das áreas avaliadas com essa variedade apresentaram a bactéria. Assumindo que essa proporção de contaminação também se mantenha para todo Centro-Sul, uma área de 85,5 mil hectares estaria com raquitismo-das-soqueiras, com uma taxa de infecção de 0,2% pois nem todas as touceiras estariam contaminadas nessa área (no presente estudo, 47 das 20.870 amostras analisadas dessa variedade estavam doentes). Em pesquisa realizada por Gagliardi & Camargo (2009), que comparou parcelas sadias com parcelas doentes, a diferença de produtividade entre elas em três anos de colheita foi de 26,2%. Considerando que a produtividade média seja de 100 toneladas por hectare para a RB867515 e a taxa de infecção média de 0,2%, estima-se um dano à produtividade de 78.600 toneladas de cana por ano devido ao raquitismo-das-soqueiras (100 ton de produtividade média X 1,5 milhões de hectares plantadas com a variedade X 0,2% de taxa média de infecção encontrada no estudo X 26,2% de quebra de produtividade). Baseando-se no preço médio da tonelada de cana pago em 2015 de R$52,8 (US$13,2), essa quebra de 78.600 toneladas de cana causada pelo raquitismo-das-soqueiras resultou em prejuízo de mais de 1 milhão de dólares. Vale ressaltar que essa perda considerou somente a RB867515 e que todas variedades podem ser atacadas, caso medidas de controle não sejam adotadas. Outro fator importante reside no fato que esses valores podem ser ainda maiores, pois a amostragem para foi de somente seis amostras por hectare, coletadas aleatoriamente. Essa quantidade foi estabelecida devido à grandiosidade, abrangência, custo e logística do levantamento. Nas análises realizadas pelo laboratório (LAGEM/UFSCar) a recomendação é de que a coleta seja de 100 amostras por talhão, direcionadas para plantas mais fracas. Embora o tamanho do talhão varie muito, levantamentos dos anos de 2009, 2010 e 2011 com amostras coletadas seguindo essa orientação, mostraram incidência média de 30,4% na RB867515, corroborando a suspeita de que a contaminação por raquitismo-das-soqueiras pode ser ainda maior.

Espera-se que a divulgação desses dados mostre à indústria canavieira a importância atual do raquitismo-das-soqueiras e o dano invisível que essa doença está causando. O setor necessita adotar urgentemente medidas de controle, empregando-se exclusivamente materiais propagativos sadios. Para isso, é fundamental antes do plantio realizar análise laboratorial e o tratamento térmico dos materiais propagativos, quando este for o sistema adotado. Se a opção for de plantio de mudas pré-brotadas, uma alternativa disponível são os produtos Plene, que por serem advindos de culturas de tecidos, garantem a sanidade desses materiais. 


Alfredo Seiiti Urashima, Universidade Federal de São Carlos


Artigo publicado na edição 214 da Cultivar Grandes Culturas.

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