Vale a pena?

A utilização da hidrólise da cana-de-açúcar deve ser analisada com critério, sobretudo no que diz respeito aos custos, perigos e riscos, pois em geral os benefícios não justificam o custo do tratamen

10.11.2015 | 21:59 (UTC -3)

A utilização da cana-de-açúcar como volumoso suplementar para a seca, baseia-se na facilidade e tradição de cultivo e, sobretudo, por constituir-se em opção competitiva quando comparada às outras fontes de volumosos. Em simulações econômicas de sistemas de produção animal, a cana-de-açúcar vem prevalecendo como uma das opções mais interessantes para minimização do custo de rações e do produto animal e maximização da projeção de receita líquida da atividade. Além disso, outros aspectos justificam a utilização da cana-de-açúcar na alimentação de ruminantes:

1. Simplicidade operacional para a manutenção e a condução da cultura;

2. Pico de produção e de valor nutritivo coincidente com o período de escassez de forragens;

3. Grande desenvolvimento no cultivo e melhoramento genético devido à produção de açúcar e álcool.

Apesar desta planta apresentar, como outra característica desejável, elevado teor de carboidratos solúveis, especialmente sacarose, outros nutrientes aparecem de forma a prejudicar seu valor nutritivo. Os baixos teores de proteína bruta e minerais, aliados ao nível elevado de constituintes da parede celular (celulose, hemicelulose e lignina) fazem com que a digestibilidade da matéria seca desta forragem e, sobretudo, as digestibilidades das frações fibrosas sejam reduzidas.

Além disso, um volumoso como a cana-de-açúcar, com alto teor de fibra insolúvel em detergente neutro (FDN) e baixa digestibilidade desta fração pode resultar em elevado tempo de retenção da digesta no rúmen, afetando o consumo e como conseqüência final, levando a desempenho animal insatisfatório.

Em alguns casos os tratamentos pós-colheita podem ser as únicas opções para se melhorar a qualidade do volumoso. Neste sentido, várias técnicas se destacaram em relação ao tratamento de materiais fibrosos em especial a cana-de-açúcar e seus subprodutos.

A principal técnica utilizada é a hidrólise. Existem vários métodos de hidrólise, sendo eles: métodos físicos, químicos e biológicos. A eficiência dessas estratégias de tratamento é variável, sendo, historicamente, o processo biológico o menos eficiente, havendo eficiência intermediária para os processos físicos e químicos.

A busca por técnicas aplicadas de hidrólise de volumosos iniciou-se nos países nórdicos, na década de 50, com especial atenção ao tratamento de palhadas, sendo essas as únicas opções de alimentos volumosos disponíveis, nesses países, para os animais. No Brasil o principal método utilizado foi o tratamento físico do bagaço de cana-de-açúcar oriundo da indústria sucro-alcooleira. Esse método recebeu ênfase nas décadas de 80 e 90, devido ao impulso do Proálcool, e tem seu uso atual limitado principalmente pelo elevado preço de oportunidade do bagaço de cana-de-açúcar.

A seguir, os métodos de tratamento hidrolítico.

Tratamento biológico

Esse método consiste na utilização de fungos, de bactérias ou de suas enzimas na decomposição da parede celular e da lignina, o que pode melhorar a taxa e/ou extensão de degradação da fibra vegetal. O tratamento biológico, para promover a hidrólise de volumosos, oferece vantagens de baixo risco de contaminação química do meio e menores gastos de energia que os tratamentos químicos ou físicos. Como desvantagem pode-se citar o maior tempo necessário para que o material seja utilizado devido à ação mais lenta dessas reações. Um questionamento deste tipo de tratamento hidrolítico fica por conta de se tratar de uma ação biológica e, portanto, ser dependente de vários outros fatores, como por exemplo, a interação e/ou competição com outros microrganismos, efeito ambiental, etc. Daí a variabilidade e inconsistência de resultados que façam justificar a utilização deste tipo de tratamento.

Tratamento físico

Foi utilizado no tratamento do bagaço de cana-de-açúcar com pressão e vapor, muito difundido nas décadas de 80 e 90, surgindo como uma nova opção para alimentação animal, entretanto, hoje em dia esse processo tem sido pouco utilizado em virtude do custo de oportunidade do bagaço como combustível para fornos, na co-geração de energia, além da sua utilização na indústria moveleira.

O método consiste na aplicação de alta pressão de vapor por um determinado tempo. Vários trabalhos de pesquisa foram conduzidos visando otimizar essa pressão e tempo de tratamento. Normalmente a faixa de pressão aplicada fica entre 5 e 40 kg/cm2, com duração média de 5 min. Em trabalho realizado por Burgi (1985), o autor verificou que a otimização da pressão aplicada e tempo de aplicação ocorreu com 17 kg/cm2, durante 5 min.

As principais modificações ocorridas na célula vegetal durante o tratamento sob pressão e vapor referem-se às alterações na fração hemicelulose e ao aumento no teor de compostos fenólicos e de carboidratos solúveis. Ocorre, por ação da água, o intumescimento da matriz da parede celular. Por ação do aumento da temperatura, alguns pontos terminais da estrutura ramificada da hemicelulose sofrem hidrólise gerando ácido acético, também capaz de provocar o intumescimento intercristalino. Paralelamente, ocorre hidrólise da parte mais amorfa da celulose e da hemicelulose, produzindo açúcares redutores. Após abrupta descompressão da massa, parte do vapor condensado se vaporiza, mesmo dentro da fibra, o que provoca dilatação da mesma. As fibras tratadas desta forma são muito mais permeáveis e susceptíveis à degradação pelos microrganismos no rúmen. Porém este tratamento não pode ser drástico a ponto de se produzir, por reações secundárias, furfural e compostos fenólicos em quantidades suficientes para se inibir a microflora do rúmen.

Tratamento químico

É comum a utilização de agentes alcalinos para melhorar a digestibilidade de alimentos volumosos de baixo valor nutritivo. Agentes hidrolíticos foram utilizados para melhorar o valor nutritivo de forragens desde o final do século XIX. Desses compostos químicos o hidróxido de sódio (NaOH) é sem dúvida o mais utilizado, mas outros agentes hidrolisantes como o hidróxido de cálcio [Ca(OH)2], a amônia anidra (NH3) e mais recentemente o óxido de cálcio (cal virgem – CaO), têm sido utilizados para melhorar o valor nutritivo da cana-de-açúcar. Esses agentes atuam solubilizando parcialmente a hemicelulose, promovem o fenômeno conhecido como "intumescimento alcalino da celulose", que consiste na expansão das moléculas de celulose, causando a ruptura das ligações intermoleculares das pontes de hidrogênio, as quais conferem a cristalinidade da celulose, além de promoverem o aumento na digestão da celulose e hemicelulose. O teor de lignina normalmente não é alterado pelo tratamento químico, mas a ação desse tratamento leva ao aumento da taxa de digestão da fibra, provavelmente devido às quebras das ligações entre as frações celulose e hemicelulose.

Riscos, custos e perigos

Técnica de hidrólise pelo método físico requer o uso de autoclave e disponibilidade de vapor sob pressão o que onera sua utilização direta pelo produtor. O custo da tonelada de MS do bagaço de cana-de-açúcar hidrolisado por pressão e vapor fica em torno de R$ 100, sendo próprio para utilização junto às usinas e destilarias associadas, onde se dispõe de vapor a baixo custo. O custo do tratamento químico da cana com NaOH a 50%, no tratamento com 2% da massa verde, fica em torno de R$ 25 por tonelada de cana. Para a cal virgem (1%), o custo do tratamento de uma tonelada de cana também fica próximo de R$ 25.

Os perigos decorrentes da hidrólise ficam por conta da contaminação do meio ambiente por produtos químicos utilizados. Cuidado especial deve ser tomado na aplicação de NaOH, uma vez que comumente pode ser observada intoxicação da vias respiratórias de indivíduos que fazem a aplicação do produto, além de se ter notícias de lesões epiteliais dos mesmos. Por isso, e somado ao fato do nível de sódio (Na) na dieta dos animais elevar-se demasiadamente, a utilização desse produto tem sofrido sérias restrições. Além disso, o acúmulo de Na no solo devido à excreção deste elemento nas fezes dos animais, tem trazido sérias preocupações do real manejo que deve ser dado ao estrume de animais que recebem forragens tratadas com vários dos produtos químicos utilizados. Outra preocupação do produtor que utilizar o NaOH fica por conta da ação corrosiva que este produto sobre o conjunto mecanizado. Até mesmo a cal virgem (óxido de cálcio) libera, em reação com água, calor, daí a necessidade de cuidado especial ao se fazer a diluição e mistura à forragem.

Resultados

Embora a literatura apresente grande diversidade de respostas ao uso do NaOH, os dados obtidos no Departamento de Zootecnia da USP/Esalq com a utilização do tratamento de cana-de-açúcar com 2% de NaOH, na concentração de 50% mostraram não haver diferenças significativas na utilização do produto no intuito de elevar a digestibilidade e melhorar o desempenho animal de bovinos alimentados com ração contendo esse volumoso tratado quando comparado aos que receberam a cana-de-açúcar sem o tratamento. Uma das justificativas para essa observação seria o tamanho de partícula da cana-de-açúcar após o corte. Para que a soda cáustica promovesse alterações positivas na cana-de-açúcar o tamanho médio das partículas deveria ser inferior a 6 mm, objetivo difícil de ser alcançado em virtude da indisponibilidade de equipamentos com precisão de corte para obtenção de partículas inferiores a tal dimensão. De acordo com Ezequiel et al. (2001), os resultados relatados para os efeitos de hidrólise com produtos alcalinos sobre os teores de carboidratos estruturais (frações da parede celular) são inconsistentes. Esses resultados variam de significativos (Tabelas 1 e 2 -

) a sem efeito como os observados por Contato et al. (2004) para as frações FDN, FDA, hemicelulose e lignina de cana-de-açúcar in natura ou tratada com 2 ou 3% de NaOH.

Aos níveis de 0, 3, 4 ou 6% de NaOH na base da matéria seca, Lousada et al. (1977) encontraram aumentos significativos na ingestão de MS de bovinos alimentados com essas forragens, passando de 6,82 kg MS/animal/dia (0% de NaOH) para 8,12 kg MS/animal/dia (6% de NaOH). Isso pode ser explicado por conta da quebra dos constituintes da parede celular, levando a queda na taxa de ruminação e aumento da taxa de passagem com maior aporte de energia sendo oferecida ao animal, culminando em aumento na ingestão de MS.

Ao analisarmos a Tabela 2 podemos observar que a maior DVIVMS e os menores teores de FDN e LIG das canas-de-açúcar tratadas com NaOH refletiram o rápido e efetiva ação desse tratamento hidrolítico sobre estas frações da forragem.

A Foto da página 18 mostra o aspecto visual da cana tratada com NaOH variando entre 0 a 8% de NaOH na massa verde.

Como alternativa ao tratamento com NaOH, tem-se utilizado a cal virgem ou óxido de cálcio (CaO) e o hidróxido de cálcio como agentes oxidantes para a hidrólise da cana-de-açúcar. Entretanto, os resultados científicos de tais técnicas são escassos, havendo recomendações baseadas em experiências de campo e observações empíricas.

A recomendação de campo da hidrólise com cal virgem sugere a utilização de uma solução contendo 25 kg de cal virgem, sendo adicionados 100 l de água, e essa ordem é importante, deve-se sempre adicionar a água à cal e não o oposto. Após o preparo da solução esta deve ser deixada em descanso por 12 horas e, só então, deve-se adicionar 40 l dessa solução por tonelada de cana-de-açúcar.

Deve-se ressaltar que tais informações merecem investigações científicas para sua definição e adoção e que esse método é potencialmente útil, mas seu uso poderá criar dificuldades de aceitação pelos produtores. Também, a grande quantidade de água sugerida certamente causaria dificuldade operacional de manejo. Uma possibilidade para se melhorar a técnica exposta acima seria diminuir a proporção de água no método e, se necessário, esperar por um tempo maior de hidrólise antes do fornecimento aos ruminantes.

Na técnica da hidrólise através do tratamento com hidróxido de cálcio (cal hidratada) é necessária uma maior quantidade e um tempo de ação do produto mais prolongado para que as reações sejam de eficiências semelhantes ao tratamento com hidróxido de sódio, pelo fato do primeiro não ser tão cáustico como o último.

Comentários

O processo de hidrólise da cana-de-açúcar deve ser analisado com critério, sobretudo no que diz respeito aos custos, perigos e riscos dessa tecnologia. Os resultados para o tratamento hidrolítico deveriam se apresentar mais efetivos para que economicamente seja interessante sua utilização. Em geral os benefícios observados parecem não justificar o custo do tratamento. São necessários resultados técnico-científicos para definir a recomendação da técnica de hidrólise química com o óxido e o hidróxido de cálcio. A técnica de hidrólise está sendo estudada por alguns grupos de pesquisa no país que poderão elucidar melhor o assunto assim que começarem a surgir os resultados iniciais. O tratamento hidrolítico também será interessante de ser estudado em situações de conservação da cana-de-açúcar sob forma de ensilagem. Alguns estudos, embora empíricos já vem sendo conduzidos nesse sentido.

Lucas José Mari e Luiz Gustavo Nussio

USP/ESALQ

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