Vegetação espontânea em hortaliças

Vetoras de vírus e capazes de competir por recursos naturais, espécies selvagens indesejadas aos cultivos podem ser fonte de genes de interesse agronômico

14.08.2020 | 20:59 (UTC -3)
Cultivar Hortaliças e Frutas

O termo “plantas daninhas” surgiu quando o homem iniciou suas atividades agrícolas e separou as espécies “benéficas” (plantas cultivadas) das “maléficas” (plantas não cultivadas). Há três teorias para explicar o surgimento das plantas daninhas: (a) seriam espécies selvagens que foram se adaptando e sendo selecionadas pelo contínuo distúrbio do habitat; (b) seriam resultantes de hibridações entre espécies selvagens e cultivadas; e (c) poderiam ser provenientes do abandono de espécies selvagens durante o processo de domesticação.

Como conceito amplo e generalista, os termos “daninhas” ou “invasoras” são utilizados para qualquer espécie de planta que ocorre onde não é desejada pelo homem. As plantas daninhas podem ser silvestres, selvagens ou nativas, ruderais, mato e inço.

Silvestres

Espécies herbáceas ou lenhosas que fornecem flores ou frutos e que podem ser utilizadas na alimentação humana sem a necessidade de cultivo, no entanto, não possuem as características das espécies de plantas cultivadas (exemplo: amoras silvestres).

Selvagens ou nativas

População ou comunidade de plantas herbáceas ou lenhosas que compõem um ecossistema natural de uma determinada região.

Ruderais

Espécies de plantas, geralmente herbáceas de pequeno porte, que durante o processo evolutivo se adaptaram a ambientes antrópicos, ocupando beiras de calçadas, terrenos baldios e outros tipos de ambientes urbanos. 

Mato

Vegetação constituída de plantas não cultivadas, de porte médio, geralmente sem qualquer utilidade para as necessidades de alimentação humana.

Inço

População ou comunidade de plantas que se desenvolvem espontaneamente, não possuem atrativos ou atributos agronômicos, porém, apresentam capacidade de rápida dispersão em áreas preparadas para o cultivo.

Surgimento da agricultura

Acredita-se que a agricultura surgiu nos períodos neolítico e paleolítico, entre 12.000 e 10.000 anos a.C, muito antes do surgimento da escrita e, portanto, não há registros do início dessa atividade, que se tornou essencial para a sobrevivência da espécie humana. Deste evento, surgiram as plantas domesticadas, que atualmente fornecem fibras, combustíveis e alimentos (óleos, grãos, frutas e hortaliças). A agricultura consolidou-se, então, como uma das atividades mais importantes desenvolvidas pela humanidade, com presença em todos os setores da economia, desde a alimentação até a produção de plantas ornamentais, vestimentas e energia, gerando renda e empregos diretos e indiretos para milhões de pessoas e movimentando a economia de muitos países.

Durante a Revolução Agrícola, quando o homem fez sua transição do estilo de vida caçador-coletor (nômade) para o agrícola (sedentário), a monocultura tornou-se prática necessária, devido ao aumento populacional, trazendo consigo avanços importantes. Esses avanços se deram com a possibilidade de incremento da produção em um menor intervalo de tempo, além da redução dos custos. Entretanto, simultaneamente, surgiram problemas relacionados ao desequilíbrio ecológico e à perda de biodiversidade que, consequentemente, ocasionaram a emergência de pragas (insetos, ácaros, nematoides e moluscos) e doenças causadas por bactérias, fitoplasmas, fungos, vírus e viroides.

Trapoeraba (Commelina benghalensis, Família Commelinaceae) com sintomas foliares de anéis e manchas cloróticas causados pelo cucumber mosaic virus (CMV, Cucumovirus).
Trapoeraba (Commelina benghalensis, Família Commelinaceae) com sintomas foliares de anéis e manchas cloróticas causados pelo cucumber mosaic virus (CMV, Cucumovirus).

Vírus e hospedeiros

Os vírus de plantas, por serem parasitas intracelulares obrigatórios e transmitidos, em sua maioria, por insetos vetores, foram beneficiados em um ambiente agrícola com menor diversidade de espécies. Neste processo de adaptação às diferentes condições agroecológicas, principalmente devido à prática da monocultura intensiva, os vírus e seus vetores encontraram um ambiente propício para a manutenção de suas populações e a ocorrência de epidemias.

Durante os processos de domesticação das plantas, o homem exerceu plenamente a sua capacidade de manipular a natureza. Gradativamente, foram selecionadas plantas com características agronômicas desejáveis, como precocidade, alta produção, maior concentração de açúcares, valor nutricional elevado e, principalmente, com alterações significativas no tamanho, na cor e no formato de folhas, flores e frutos. A seleção e o posterior controle de cruzamentos (entre plantas de uma mesma espécie), para a preservação de características desejadas, levaram à multiplicação em larga escala de plantas com uma base genética estreita, quase clones. Quando levadas a campo, essas plantas foram expostas a diferentes patógenos, incluindo os vírus, cujas populações se encontravam em equilíbrio. A suscetibilidade das plantas, devido à ausência de genes de resistência a doenças, aliada à virulência dos patógenos, em um ambiente (agroecossistema) favorável, propiciou (e ainda propicia) a ocorrência de epidemias.

Espécies de plantas selvagens, que se multiplicam por fecundação cruzada aleatória, ainda preservam a heterogeneidade de suas populações, garantindo sua manutenção no ambiente através da geração de descendentes com diferentes graus de resistência, não somente aos vírus como também a fatores de estresse abiótico, pragas e outros fitopatógenos. Assim, indivíduos suscetíveis não se estabelecerão no campo, enquanto os resistentes alcançarão a fase de reprodução e poderão se multiplicar e manter a sua diversidade genética, garantindo a perpetuação da espécie. No entanto, muitas espécies selvagens são designadas como plantas ou ervas “invasoras” ou “daninhas”, desde que ocorram onde não são desejadas e passem, de alguma forma, a competir com as espécies cultivadas. A melhor denominação, entretanto, para essas espécies de plantas indesejadas, que crescem espontaneamente em áreas cultivadas, é “vegetação espontânea”.

Assim como as espécies cultivadas, as plantas da vegetação espontânea também podem ser hospedeiras de vírus de plantas, atuando como reservatórios, ou seja, podem ser fontes de manutenção do inóculo no campo. As plantas hospedeiras, sejam elas cultivadas ou de vegetação espontânea, constituem a principal forma de sobrevivência dos vírus, tanto em áreas de produção, como em campos abertos ou matas. Independentemente de sua condição, essas plantas, além de atuarem como reservatórios de vírus, podem ser hospedeiras e manter colônias de insetos vetores, como pulgões, moscas brancas, cochonilhas, cigarrinhas (Ordem Hemiptera), tripes (Ordem Thysanoptera) e vaquinhas (Ordem Coleoptera), além de ácaros (Ordem Acari). A maioria das espécies de plantas da vegetação espontânea possui as características de crescer em locais inóspitos, apresentar hábito agressivo, alta capacidade reprodutiva, dispersão de sementes principalmente pelo vento, resistência a controle químico e capacidade de estabelecer grandes populações em extensas áreas. Essas características contribuem para a manutenção dos vírus no campo, desempenhando papel fundamental na epidemiologia das viroses. Portanto, o conhecimento do papel epidemiológico dessas plantas é importante para o entendimento dos fatores associados à difusão e à propagação das viroses, sua frequência, seu modo de distribuição e sua evolução, que auxiliarão na adoção de estratégias de manejo e controle para a prevenção de epidemias.

Leiteira (Euphorbia heterophylla, Família Euphorbiaceae) com sintoma foliar de mosaico dourado causado por um vírus do gênero Begomovirus (geminivírus).
Leiteira (Euphorbia heterophylla, Família Euphorbiaceae) com sintoma foliar de mosaico dourado causado por um vírus do gênero Begomovirus (geminivírus).

Fontes de genes de interesse agronômico

Há muitos relatos de vírus infectando naturalmente espécies da vegetação espontânea. Porém, há poucos estudos da associação dessas plantas com epidemias. Os melhoristas de plantas, para tentar conter as epidemias nos cultivos comerciais, recorrem aos cruzamentos controlados com outras espécies parentais (selvagens), a fim de selecionar e resgatar possíveis genes de resistência preservados na natureza. Esta prática foi adotada para obtenção de material genético de alface (Lactuca sativa) resistente ao mosaico, virose induzida pelo potyvirus Lettuce Mosaic Virus (LMV). O centro de origem de L. sativa é o Leste do Mediterrâneo, mas as cultivares e os híbridos de alface disponíveis, atualmente, para comercialização, originaram-se de sucessivas seleções e cruzamentos artificiais com espécies espontâneas de Lactuca serriola (originária da região Circum-mediterrânea e Egito), Lactuca saligna (originária de Portugal continental e Arquipélago de Açores) e Lactuca virosa (originária da Grã-Bretanha). Porém, com a monocultura intensiva, epidemias sucessivas do mosaico da alface foram registradas nas principais regiões produtoras de alface do mundo. Devido aos prejuízos causados e à dificuldade em controlar a disseminação do vírus no campo - que além de ser transmitido eficientemente por afídeos é disseminado por sementes -, recorreu-se ao desenvolvimento de híbridos de alface que apresentassem genes de resistência ao LMV. Após anos de estudos, genes que conferiam resistência a este vírus foram identificados em plantas selvagens de L. serriola e L. virosa, ancestrais de L. sativa. Esses genes (mol1 e mol2), por meio de cruzamentos controlados, foram introgredidos na maioria dos híbridos de alface atualmente comercializados. Processo semelhante foi empregado para o desenvolvimento de variedades de tomateiro (Solanumly copersicum) resistentes a vírus. O gênero Solanum possui cerca de duas mil espécies neotropicais, concentradas principalmente nos Andes, sendo que muitas delas são consideradas autocompatíveis, ou seja, espécies selvagens podem cruzar com tomateiros comerciais, o que facilita os trabalhos de melhoramento. Quando a produção de tomate começou a ser realizada de forma intensiva, houve epidemias associadas ao Tobacco Mosaic Virus (TMV, Tobamovirus), um vírus que, embora não tenha vetores associados à sua transmissão, se disseminava com eficiência, em decorrência do adensamento dos plantios associado à fácil transmissão do vírus por contato entre plantas ou por meio dos tratos culturais (podas e desbastes). A partir do incessante trabalho de melhoramento, um gene denominado Tm-2a, que confere resistência ao TMV, foi identificado em Solanum peruvianum, uma espécie da vegetação espontânea, originária dos Andes e que ocupa as bordas de campos e vales fluviais costeiros das regiões norte do Chile e central do Peru. O gene Tm-2a foi introgredido nas variedades de tomateiros comerciais, conferindo resistência ao TMV, o que permitiu o controle efetivo desse vírus.

Espécies da vegetação espontânea como hospedeiras de vírus

As plantas da vegetação espontânea, mesmo aquelas consideradas “daninhas”, são fontes de genes, que podem ser selecionados e introduzidos nas espécies cultivadas. Por outro lado, essas mesmas espécies também podem ser reservatórios de vírus generalistas, que infectam espécies cultivadas de importância econômica, tais como: Cucumber mosaic virus (CMV, Cucumovirus), Lettuce mosaic virus (LMV, Potyvirus), Potato virus Y (PVY, Potyvirus), Tobacco mosaic virus (TMV, Tobamovirus) e Turnip mosaic virus (TuMV, Potyvirus), além de diversas espécies de Begomovírus (conhecidos por geminivírus) e Orthotos povírus (conhecidos como vírus do vira-cabeça). Assim, a partir de uma planta selvagem, um vírus generalista pode assumir o status de “oportunista”, invadir áreas cultivadas, se disseminar rapidamente (na maioria das vezes por meio de seus vetores) e se estabelecer definitivamente em uma região, por meio de ciclos consecutivos de epidemias no campo. Por esse motivo, muitas vezes, a eliminação destas plantas, em áreas cultivadas, se torna uma prática importante de manejo - para a manutenção da sanidade da cultura. Vale ressaltar que algumas espécies da vegetação espontânea podem ser infectadas por vírus recém-introduzidos, oriundos de uma espécie cultivada. Nesses casos, a vegetação espontânea, que não era fonte desse inóculo viral, passa a ser uma vítima desse vírus. Uma vez sendo infectada, pode, então, constituir um novo reservatório do vírus, amplificando a complexidade das epidemias.

Diversas espécies de plantas da vegetação espontânea, pertencentes às famílias Asteraceae, Amaranthaceae, Brassicaceae, Commelinaceae, Fabaceae, Lamiaceae, Malvaceae Plantaginaceae, Solanaceae e Tropaeolaceae já foram descritas como hospedeiras naturais de vírus pertencentes aos gêneros Alfamovirus, Badnavirus, Begomovirus, Carmovirus, Closterovirus, Comovirus, Ilarvirus, Luteovirus, Orthotospovirus, Potexvirus, Potyvirus, Cytorhabdovirus, Nucleorhabdovirus, Sequivirus, Sobemovirus, Tobamovirus, Tymovirus e Varicosavirus. Vale destacar que dos vírus de plantas já relatados no mundo, aproximadamente 15% foram descritos em espécies da vegetação espontânea. Destes vírus, merecem destaque os pertencentes aos gêneros Begomovirus e Potyvirus, que juntos abrigam mais de 30% do total das espécies de vírus de plantas conhecidas.

Rubim (Leonurus sibiricus, Família Lamiaceae) com sintoma foliar de mosaico dourado causado pelo Leonurus mosaic virus (LeMV).
Rubim (Leonurus sibiricus, Família Lamiaceae) com sintoma foliar de mosaico dourado causado pelo Leonurus mosaic virus (LeMV).
Malva silvestre (Malva sp.) com sintoma foliar de mosaico dourado causado por um vírus do gênero Begomovirus (geminivírus).
Malva silvestre (Malva sp.) com sintoma foliar de mosaico dourado causado por um vírus do gênero Begomovirus (geminivírus).

A compreensão da interação das espécies da vegetação espontânea com os vírus e seus respectivos insetos vetores é de fundamental importância para evitar a introdução precoce de uma virose em áreas com novos plantios. O entendimento das interações vírus-hospedeiro-vetor, aliado à utilização de variedades (ou híbridos) resistentes, contribui de forma efetiva para o manejo e o controle das viroses.

Diante dessa complexidade observada nos diversos agroecossitemas brasileiros, fica uma pergunta para reflexão: até que ponto as plantas da vegetação espontânea são vilãs ou vítimas dos sistemas agrícolas?

Alexandre Levi Rodrigues Chaves, Marcelo Eiras e Leilane Karam Rodrigues, Instituto Biológico

Cultivar Hortaliças e Frutas Julho 2019

A cada nova edição, a Cultivar Hortaliças e Frutas divulga uma série de conteúdos técnicos produzidos por pesquisadores renomados de todo o Brasil, que abordam as principais dificuldades e desafios encontrados no campo pelos produtores rurais. Através de pesquisas focadas no controle das principais pragas e doenças do cultivo de hortaliças e frutas, a Revista auxilia o agricultor na busca por soluções de manejo que incrementem sua rentabilidade. 

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